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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Cadê papai?

Apoiei a eleição de Bolsonaro – como, aliás, a de Trump, cuja única virtude era não ser a Hillary Clinton – por vê-lo como um mal menor, não como um bem objetivo. Como disse a Seu Manuel da padaria, “se este quinderovo estivesse concorrendo contra o PT, com chances de ganhar, faria campanha pelo quinderovo”. Seu liberalismo americanista é uma das razões mais sérias para que me fosse impossível vê-lo como um bem, mais séria ainda que seu temperamento, sua vida conjugal nada exemplar etc. Pois ele acaba de ser escancarado agora, com a “permissão para o trabalho aos domingos e feriados, ‘em caráter permanente’”, do “comércio em geral”. É uma declaração de guerra do economicismo contra a família e contra os direitos mais elementares dos trabalhadores.

Não se trata de ser ou não ser preceito religioso. Aliás, como o preceito religioso cristão é de não efetuar trabalho servil aos domingos e dias santos de guarda, seria mesmo possível dizer que o comércio, por si, já não se enquadraria numa leitura mais liberal da lei divina, que restringiria apenas algumas atividades exercidas no comércio, como carregar caixas pesadas de mercadoria, enquanto não restringiria outras, como receber, pagar, embrulhar, atualizar livros-caixa etc. A questão é totalmente outra.

É evidente para quem quer que já tenha enfartado ou tido uma úlcera nervosa que trabalhar incessantemente, sete dias por semana, é uma péssima ideia. Daí a necessidade de um dia por semana de repouso. Também é evidente que, numa sociedade em que o estudo e o trabalho normalmente ocorrem distante do lar, a família não tem outro dia para se reunir a não ser o dia de descanso semanal. Durante toda a semana útil, os filhos vão para a escola e o(s) pai(s), para o trabalho. A família mal se vê de manhã e à noite, quando todos já estão cansados. Que dia lhes resta para que os pais possam acompanhar o desenvolvimento dos filhos, para que os esposos possam ficar juntos um pouco e alimentar mais o amor que os une, para que os filhos possam aprender no colo daqueles que os criam? O dia de descanso semanal da família.

O dia de descanso, seja ele um ou outro, precisa ser único

Este dia, portanto, deve ser forçosamente um dia único para toda a sociedade; de nada adianta os filhos terem um dia de descanso enquanto o pai trabalha, e vice-versa. Os soviéticos, em seu afã de modificar a própria estrutura da realidade com o fito de transformar a natureza humana (spoiler: não funciona), tentaram substituir o domingo, associado pelo grosso da população russa de então ao mandamento cristão, por uma escala variável em que cada pessoa teria um dia de descanso em cinco. Imaginaram que não haveria problema algum. Que, ao contrário, as pessoas ficariam felicíssimas por ter mais dias de descanso que antes. Mas não: as famílias passaram a ter dias de descanso desencontrados, e a grita foi tão generalizada que o governo comunista foi obrigado a voltar atrás. E olha que comunista só volta atrás nas besteiras que faz quando o pescoço deles está visivelmente na reta.

Não é por acaso que as três grandes religiões monoteístas têm, cada uma, um dia de descanso: os muçulmanos na sexta, os judeus no sábado e os cristãos no domingo. Mas todos uma vez por semana. A semana, afinal, é algo natural: ela corresponde a uma fase da lua. É, a mesma lua que hoje em dia é escondida pelas luzes artificiais da rua. Mas acredite, meu bom leitor: cada fase dela dura exatamente uma semana, a olhos nus. E não é por acaso que nos seja necessário descansar uma vez a cada fase da lua, assim como não há nada de estranho em que as mulheres tenham um período fértil a cada ciclo completo da lua (quatro semanas): o corpo humano, por mais incrível que isso possa parecer a quem vive em ambientes climatizados e só come coisas que vêm em caixinhas tetra pak, faz parte da mesma ordem de todas as coisas que orienta o resto da Criação. Está tudo interligado: bebemos água, comemos plantas e bichos, e produzimos estrume, como qualquer outro animal; a diferença é apenas que hoje em dia fingimos que nada disso tem relação com o famoso meio ambiente, que a água brota da torneira e que o vaso sanitário faz desaparecer nossos dejetos.

O fato é que, se descansarmos uma vez a cada dez dias, ficaremos estressados. Se descansarmos uma vez a cada cinco ou quatro, ficaremos entediados. A conta certa é de um dia por semana. O que coloca, então, a próxima questão: se é necessário que descansemos um dia por semana, e se o dia há forçosamente de ser o mesmo para que as famílias possam estar juntas, qual há de ser este dia? Em termos naturais, rigorosamente tanto faz como tanto fez. Ele poderia perfeitamente ser às quartas-feiras, como os veganos instauraram suas “segundas-feiras sem carne”, enquanto os católicos não a comemos às sextas.

Do mesmo autor: Tem um Estado no meu carro (publicado em 13 de junho de 2019)

Em termos culturais, contudo, há uma diferença. A população do Brasil é, em sua esmagadora maioria, cristã. Mesmo que ela houvesse perdido em peso a crença na doutrina cristã, como ocorreu com as sociedades europeias, ela continuaria culturalmente cristã. Cristã, não judaica ou muçulmana. Isto se reflete em miríades de pequenos detalhes de nossas vidas, um dos quais é o dia preferencial de descanso. Se estivéssemos na Indonésia ou no Catar, por exemplo, o dia em que faria sentido estabelecer uma folga geral, um dia de descanso legal, seria forçosamente a sexta-feira. Afinal, os muçulmanos descansam neste dia, e os não muçulmanos, que têm outros dias de descanso por preceito religioso, são lá uma pequeníssima minoria. Do mesmo modo, em Israel não faria qualquer sentido que fosse outro o dia de descanso geral que não o sábado dos judeus. Afinal, é o país da nação judaica. Lá, inclusive, nem mesmo os transportes públicos funcionam aos sábados. Aqui, então, sendo um país ao menos culturalmente cristão, é evidentemente o domingo que deve ser o dia de descanso, mesmo que a maioria substitua o culto a Deus pelo jogo de futebol, o churrasco e a cerveja. Provavelmente cerca de metade da população do país lembra-se de Deus aos domingos, mas toda ela espera comer uma macarronada ou um churrasco (duas formas de dar menos trabalho à esposa) na companhia dos que ama, precisamente neste dia. Não na sexta, nem no sábado: no domingo. É um componente cultural da sociedade brasileira.

O dia de descanso, todavia, seja ele um ou outro, precisa ser único. É necessário, para que este dia sirva a seus propósitos, que estejam todos de folga, marido, esposa e filhos, no mesmo dia. E é isto que a nefanda portaria do Ministério da Economia impede, ao dar ao comércio uma autorização “geral” para que funcione aos domingos. Ora, é necessário que haja serviços emergenciais aos domingos: eu mesmo já perdi muitos domingos ao lado de minha família por trabalhar num deles. Enquanto minha família comia sua macarronada, eu varava as estradas com a sirene ligada. Era um serviço necessário. Mas o comércio não é, em absoluto, necessário. Alguns tipos de estabelecimento, como padarias e restaurantes, devem poder abrir neste dia, exatamente para poupar trabalho das mães e permitir uma reunião familiar menos complicada. Mas não faz sentido algum que os empregados em uma loja de roupas ou de ferramentas, por exemplo, tenham de trabalhar aos domingos. Já é péssimo que haja comerciantes que abram por conta própria suas lojas, afastando-se da própria família, deixando-a de lado para favorecer a Mammon, o demônio da ganância. Mas, quando o trabalho dominical dos comerciários passa a ser algo permitido de modo geral, passa-se também a permitir que um mau patrão chantageie seus funcionários, forçando-os a abandonar a própria família sob pena de perder o emprego.

É patético que pseudodireitos trabalhistas, como o FGTS (que consiste basicamente no “direito” de emprestar dinheiro aos políticos, recebendo juros menores que os da caderneta de poupança e só podendo tê-lo de volta com enorme dificuldade), façam com que saiam de suas tocas os péssimos sindicalistas de que padece nosso país, muito mais interessados em fazer política eleitoreira que em proteger os profissionais que em tese representariam. Já, por outro lado, um ataque assim obsceno aos direitos humanos mais básicos do trabalhador, como esta autorização governamental para arrancar os pais dos filhos no único dia em que poderiam estar juntos, passa em branco.

Qual seria a solução? Escolas com dias de descanso variáveis, para que os alunos possam seguir a escala dos pais? Claro que não. A solução é fazer como grande parte dos países europeus, em que – mesmo não havendo mais uma maioria cristã – o comércio é todo fechado aos domingos, assim como as escolas, para que as crianças, no dia em que podem acordar mais tarde, não fiquem andando pela casa com os olhinhos remelentos procurando o colo do pai, sem o encontrar.

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