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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Tradutor, traidor

(Foto: Nino Carè/Pixabay)

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Sou uma dessas pessoas que vivem entre línguas e culturas. Filho de tradutora e criado falando e ouvindo vários idiomas, nada mais natural que trabalhar como tradutor. E, efetivamente, foi como tradutor que criei meus filhos pequenos. Tenho, assim, umas tantas décadas deste ofício nas costas. A coisa é tão feia que tomei um susto quando um sujeito me escreveu outro dia e afirmou ler repetidamente ao longo do ano um triste livro de autoajuda que traduzi ainda usando uma máquina de escrever. Na época, por vergonha, eu pedira à editora que não imprimisse meu nome. Debalde; eis que volta o tal livro para me morder os calcanhares.

Costumo dizer que a tradução é um ofício impossível; veremos por que o digo neste texto. E, muito pior que isto, é um ofício incompreensível para seus usuários finais. Quem precisa de tradução não tem como entender o que é uma tradução. Menos ainda terá alguma noção de sua impossibilidade prática. Esta impossibilidade vem, em primeiro lugar, do fato de que qualquer coisa que se diga ou se escreva numa dada língua terá camadas e mais camadas de denotações e conotações que não se tem como transferir para outro idioma. Mais ainda, não existem palavras que tenham o mesmo exato sentido em outra língua. É um vício de linguagem, uma mentira, afirmar que “a palavra ou frase inglesa X ‘quer dizer’ a palavra ou frase portuguesa Y”. Não quer, não. Ela “quer dizer” o que diz, e o que diz é sempre intraduzível. É, sim, possível, pegar um pedacinho daquele emaranhado de sentidos e revesti-lo de outras conotações e denotações completamente ausentes do texto original, mas não mais que isso. É por isto que é completamente errada, desde a base, a ideia de que um livro traduzido é “o mesmo livro, só que em outra língua”. Perde-se muito do sentido original e ganha-se muito que lá não estava quando se traduz. Na prática, cria-se outro livro, livremente baseado no original.

Uma das mais belas peças de violão do repertório brasileiro é Som de Carrilhões, de João Pernambuco, tornada conhecida por Dilermando Reis. Pois bem, não toco nem um mi menor no violão, mas – apaixonado pelos evocativos sons desta música – transcrevi-a para o saxofone, meu instrumento principal. Evidentemente, ficaram no caminho os acordes todos, e o som, definitivamente, não é de carrilhões. Continua havendo ali uma bela melodia, mas a transposição de instrumento a transformou em outra coisa, bem diferente. Ora, do violão ao saxofone a diferença é bem pequena em relação àquela que encontramos entre duas línguas. Se forem línguas de famílias distintas, então, como o inglês (língua germânica), o hebraico (semita), o russo (eslava) e o português (latina), a diferença é por demais gritante. O que perdura duma língua para outra é apenas uma pequeníssima parte dum raciocínio ou duma história, ficando ao longo do caminho inúmeros elementos culturais e linguísticos absolutamente intransponíveis. E, claro, vêm de brinde inúmeros outros elementos que o autor do texto original jamais cogitaria.

É completamente errada, desde a base, a ideia de que um livro traduzido é “o mesmo livro, só que em outra língua”. Perde-se muito do sentido original e ganha-se muito que lá não estava quando se traduz

Com o rompimento do domínio absoluto do campo da cultura pela extrema-esquerda, aliado à tremenda facilitação do trabalho editorial causada pela informatização do processo, pululam novas editoras. Esta é a boa notícia. A péssima é que a maior parte dos donos de pequenas e médias editoras brasileiras não têm noção alguma do que estão vendendo. Compram os direitos de algum livro estrangeiro e põem a tradução nas mãos do sobrinho que fez intercâmbio ou de algum semianalfabeto diplomado em Letras. A incompetência é tamanha que não só não saberiam inventar um teste de proficiência tradutória, como não percebem sua necessidade. Na prática, dão menos valor ao labor de tradução e revisão que ao do desenho da capa. Mutatis mutandis, é como se alguém montasse um restaurante elegante, pagando um bom decorador e comprando um bom livro de receitas, mas contratando para comandar a cozinha o primeiro basbaque que passasse pela porta.

O resultado é que textos essenciais que a hegemonia da extrema-esquerda não permitia entrar no mercado têm sido violentados por pseudotradutores absolutamente incompetentes. Em muitos livros, talvez mesmo a maioria, só é possível entender o escrito quando se conhece a língua original e se refaz os passos do tradutor até chegar ao crassézimo erro cometido. Já vi, por exemplo, em livro finamente editado, a peremptória afirmação de que Fulano era “o tíquete mais quente na cidade”. Ora, isso não faz sentido algum; é puro e completo nonsense. Já em inglês, a expressão “the hottest ticket in town”, “traduzida” palavra por palavra pelo pafúncio que se meteu a gato-mestre sem entender patavinas nem do inglês nem do português, tem sentido muito próximo de ser “a figura mais badalada”, “da moda” etc. O pseudotradutor leu, não entendeu e lascou no papel algo que quem lê tampouco entende. Ou seja: não traduziu por não haver entendido. E assim, claro, quem não entende inglês não entende a suposta tradução. Mais valeria o pseudotradutor não ter tentado traduzir, ou o revisor corrigido, ou – finalmente – o editor ter-se dado conta de que o que tinha em mãos não era uma tradução, sim um decalque, um pastiche desprovido de sentido. Pude comprovar o que afirmo pela frustração de minha esposa, que tentando ler o tal livro me vinha a cada duas ou três páginas para que eu lhe esclarecesse o sentido de alguma frase totalmente desprovida de sentido por ter sido decalcada diretamente do inglês.

Mas a coisa pode ficar pior. Chegou-me aos ouvidos que uma editora comprou os direitos para nosso vernáculo dum dado livro de filosofia. Filosofia das complicadas, daquelas que dão dor de cabeça no estudante e o forçam a ir e voltar no livro até entender. Pois bem: a editora genialmente contratou para a tradução uma agência que, por sua vez, jogou o livro num “tradutor” virtual. Um programinha cheio das bossas, irmão mais chique do “tradutor” do Google, ou insensatez equivalente. Daí a editora, nisso muito profissional, manda o resultado da mística operação algorítmica para um estudioso do autor, para uma revisão técnica. E foi só aí que se percebeu que o computador vomitara uma mera sequência de palavras, cheia de som e fúria, mas nada significando.

Li certa feita uma carta escrita por um sujeito furibundo, que comprara um livro no original inglês assim que lançado, mas que, ao terminar o livro, percebeu que ainda não saíra a tradução brasileira, que queria comprar para o filho. Em outras palavras, para o iracundo personagem a tradução dum livro (mais a revisão, diagramação, impressão e demais etapas posteriores) deveria ser algo mais rápido que a simples leitura do livro! Ora, só para começar, há textos e textos. O tradutor dum livro como aquele de que falei no parágrafo acima muitas vezes levará dias inteiros, vários deles, “empacado” numa frase. Já o pobre coitado que traduz um livro de autoajuda há de traduzir muito mais rápido; sua paciência com aquele besteirol e a resistência do traseiro e dos tendões dos dedos que batucam o teclado é que definirão sua produtividade.

O mau editor, todavia, tampouco entende o árduo processo de tradução, esta alquimia em que se busca a quintessência do escrito para formalizar com ela a matéria doutra língua. Para ele, bem como para o vulgo, o livro traduzido seria “o mesmo livro, só que em outra língua”. Pois não é. Os exemplos abundam: a tradução do Eça das Minas do Rei Salomão é muitíssimo melhor que o original, como aliás também o são as traduções francesas do Paulo Coelho. Por outro lado, tentei ler outro dia uma tradução inglesa dum filósofo francês, e não consegui. O texto arrevesado francês se havia tornado um texto retorcido demais em inglês, língua que não tolera raciocínios mais complexos. Do mesmo modo, a tradução brasileira d’O Nome da Rosa é tão ruim que só consegui conhecer a história ao cair-me em mãos um exemplar traduzido para o francês. Aliás, via de regra, como os franceses costumam aprender a escrever bem na escola, a regra na tradução francesa é que pelo menos o texto esteja bem escrito. Foi o que salvou Paulo Coelho.

Para traduzir não basta “saber” o idioma original do livro. Aliás, ninguém “sabe” língua alguma. É impossível dominar por completo uma língua, qualquer que seja ela. Como vendedor de palavras de segunda mão, tenho plena consciência de que até mesmo nossa língua materna sempre tem aspectos para nós ignotos. Não a conhecemos nem jamais a conheceremos por inteiro, mas ainda assim estudar outra língua muitas vezes nos ilumina aspectos da própria língua materna que jamais havíamos atentado existir. Dizia minha mãe que aprender uma língua estrangeira é como abrir uma janela num lado da casa onde não havia nenhuma. Abre-se, em suma, uma vista nova, que estava ali, mas não se conhecia. Cada língua traz consigo uma interpretação por vezes radicalmente diferente da realidade, com outros recortes semânticos (quando é que um móvel com assento deixa de ser mera cadeira e passa a ser poltrona, por exemplo), sem distinções para nós naturais ou com outras, para nós quase incompreensíveis a princípio, e por aí vai. É outro modo de pensar.

Por exemplo: em português temos “ser”, “estar”, “ficar” e outros verbos de ligação. Em inglês há um só, o famoso “to be” do monólogo de Hamlet. Já em russo e nas línguas semitas não há verbo de ligação. Por outro lado, a distinção de tratamento que no português brasileiro comporta apenas “você” e “o senhor” (em Portugal há outras gradações) e inexiste em inglês tem em japonês (pelo quase nada que sei daquela língua) uma rede complexíssima de gradações. A transformação que aprender a lidar com o mundo por um prisma tão diferente ocasiona no nosso pensar é algo inconcebível para o monoglota.

Mas nossa própria língua, no nível de domínio necessário para o ofício da tradução, também acaba tendo pouco a ver com a língua não examinada do vulgo. Afinal, aprendemos a falar macaqueando a fala de quem está ao redor e, devido à triste ausência de sistematização da língua nos depósitos de crianças chancelados pelo MEC, a maior parte das pessoas continua falando e entendendo como criança. Ou pior. Arrependo-me amargamente de não ter comprado um adesivo que vi à venda uma vez, que dizia “Deus te salvareis”. É um lindo exemplo do que acabo de apontar: para o sujeito que bolou o adesivo, aquilo que deveria sinalizar a segunda pessoa do plural num verbo era outríssima coisa: um sinal de sacralidade. Aquele exótico “eis” no fim duma palavra a elevava a outra categoria, ao mundo vislumbrado da Palavra divina.

Infelizmente isto é mais regra que exceção. É frequente, por exemplo, que reações a textos meus apontem nitidamente o analfabetismo funcional do “leitor”. A pobre pessoa pesca palavras isoladas do texto, mas não consegue entender o que as liga. Recria, então, imaginosamente o dito, traçando entre os termos que julga ter reconhecido ligações com que já está acostumado. Assim, um dado analfabeto funcional vê meu texto como, sei lá, bolsonarista, e um outro como comunista. Sem que, claro, eu esteja papagaiando a linha de qualquer um dos partidos. É assim que a banda toca; na medida em que a pessoa é incapaz de realmente ler, só o que lhe resta fazer é projetar no escrito uma reiteração de algo que já conheça, preferencialmente por ter ouvido aquilo num vídeo. A passagem do oral ao escrito, bem como a do mero reconhecimento de termos à compreensão de algo totalmente novo, de ligações que jamais fizera entre coisas ou termos, lhe é algo alheio.

A transformação que aprender a lidar com o mundo por um prisma tão diferente ocasiona no nosso pensar é algo inconcebível para o monoglota

Já o tradutor, claro, deve ser plenamente alfabetizado. Ele precisa conseguir, no mais das vezes sem esforço algum, perceber a cadeia de sentido, as ligações feitas entre os termos na língua de origem. E, claro, propor algo mais ou menos equivalente na língua-alvo. Digo “mais ou menos” porque – como já apontei – não existem correspondências biunívocas entre os termos de duas línguas distintas. Sempre haverá uma infinidade de conotações e denotações que afastam os termos supostamente equivalentes; é como se numa língua se tivesse apenas o termo “matar” e na outra só se dispusesse do termo “assassinar”. E vire-se o tradutor, escolhendo o que vai jogar fora, o que vai manter e o que vai necessária porém traiçoeiramente acrescentar na hora de transpor o que foi dito. É isto que faz com que a tradução de ficção seja radicalmente diferente da de não ficção; afinal, a humanidade dos personagens da ficção é universal. Já as escolhas vocabulares dum filósofo alemão, por exemplo, comumente dependem de etimologias ou mesmo de trocadilhos, sempre intraduzíveis.

O mesmo, claro, acontece com as ligações entre os termos. Como traduzir para o russo ou o árabe – línguas desprovidas de verbos de ligação – a célebre declaração “não sou ministro; estou ministro”? A sucinta elegância da frase em português será inevitavelmente perdida. É quase inevitável que seja feita uma paráfrase elaborada, que forçosamente terá de tornar explícitos elementos que em português permanecem aconchegadamente implícitos. Não existe equivalência real. Do mesmo modo, cada família de línguas divide o tempo, por assim dizer, em tempos verbais diferentes. E, evidentemente, tampouco haverá equivalência perfeita.

Tradução, assim, é reescrita; é coautoria. Jamais se poderá ter “o mesmo livro, só que em português”. Daí meu espanto com a incompetência e incapacidade dos maus editores, que pelo ofício que escolheram deveriam saber mais sobre o peixe que vendem. Ora, o que faz com que um restaurante vá para a frente é a comida que serve, muito mais que a decoração. Do mesmo modo, uma editora que publique obras escritas originalmente em outras línguas depende antes do tradutor que de qualquer outro profissional. É ele o autor do novo livro em português. Dois excelentes tradutores traduzirão de modo diverso o mesmo texto, como dois excelentes cozinheiros prepararão de modo diferente a mesma receita. Uma capa bonita, uma diagramação confortável aos olhos e um papel escolhido a dedo podem levar a uma primeira compra; são o equivalente à decoração do restaurante. Se o texto for ilegível, no entanto, será como se a preparação duma boa receita tenha dado muito errado, por incompetência do mestre-cuca. O resultado evidente é que o leitor desconfiará de qualquer outro lançamento da mesma editora, exatamente como o freguês do restaurante, que não cairá duas vezes na mesma esparrela.

Só há de bom neste triste quadro, assim, o incentivo ao aprendizado de outras línguas, a abertura de novas janelas para o mundo, que acaba por ser consequência indireta da imbecilidade editorial. Os cursos de idiomas estrangeiros acabam virando “o tíquete mais quente na cidade”, e durma-se com um barulho desses!

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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