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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Eleições

Transplante de cabeça

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Houve tempo, no perpetuamente cambiante sistema eleitoral tupiniquim, em que era obrigatório votar de alto a baixo em candidatos da mesma coalizão. O voto “desalinhado” seria tido por nulo, e melhor seria deixar em branco o cargo para o qual não se desejasse um candidato alinhado com os demais. Era o tipo de lei gerada por gente com poder demais, miolo de menos e tempo livre demais. Afinal, o único efeito real de tal proibição de “desalinhamento” eleitoral era a geração de coalizões amplíssimas, desalinhadas por natureza.

Pois fosse essa ainda a lei, ou tivesse ela voltado (más ideias tendem a surgir novamente sempre que as pessoas já se esqueceram delas), esta eleição bateria o recorde mundial de votos nulos. Afinal, exatamente como as ruas apontavam e os institutos de pesquisa negavam, o grande eleitor desta votação foi o bolsopresidente. Para cada senador alinhado com o presidiário-em-chefe da oposição foram dois bolsossenadores eleitos. O deputado federal recordista absoluto de votos é um jovem político do Direita Minas, movimento que na prática é o braço político do bolsopresidente na terra do pão de queijo. A maior bancada do Congresso, 50% maior que a segunda, é a do bolsopartido. O grosso dos governos estaduais foi para candidatos bolsoalinhados, muitos deles com margens de vitória avassaladoras. Foram eleitos, e com boa votação, muitos candidatos que haviam sido ministros do bolsogoverno, inclusive e especialmente os mais vilificados pela mídia esquerdista e pelos sempiternos institutos de pesquisa. Até o Moro, largado pelo bolsonarismo à beira da estrada, conseguiu um carguinho para chamar de seu.

Ao mesmo tempo, praticamente todas as vitórias importantes da esquerda foram de políticos com eleitorados próprios e pessoais: Boulos, Suplicy etc. Isso já se via nas ruas, diga-se de passagem. Pelo menos aqui, no buraco em que me escondo, ainda que se visse um que outro adesivo do Molusco colado num que outro poste, era sempre ele e só ele. Nenhum candidato, por mais de esquerda que fosse, mesmo sendo do mesmo partido, ousou colar o nome no dele. Ninguém quis ser visto de mãos dadas com o Nove-dedos. Já os bolsocandidatos, soubesse ou não seu mítico protetor e eleitor de sua existência, faziam-se nas propagandas rêmoras afixadas à barriga do gigantesco bolsotubarão, para não dizer – ainda no mesmo reino do pré-sal – machos de diabo-marinho, que se tornam apêndices inermes da grande fêmea devoradora. “Não sou eu que vivo, mas Bolsonaro que vive em mim” poderia ser um slogan popular entre tais candidatos, não fosse o conflito que isso poderia causar com a base pentecostal.

Comunista do pescoço para cima e do pescoço para baixo capitalista, direitista, ou mesmo bolsofascista, a crer na imprensa: eis o eleitorado brasileiro

No dia da eleição, contudo, surgiu algo que eu não via havia muitos e muitos anos: petistas. Daqueles como os que havia nos anos 1980: orgulhosos de sê-lo, vestidos de vermelho como adoradores de Rajneesh e com estrelinhas ao peito. Bem como naquele tempo em que o partido ainda passava por honesto e dizia sustentar-se com a venda de estrelinhas de plástico, para gáudio e orgulho de seus apoiadores, não exatamente entendidos de economia. Mas eram três os representantes do século passado que vi na rua domingo, para ser mais exato; três pequeno-burgueses estrelados e revestidos de escarlate a encarnar o que os institutos de pesquisa garantiam ser a predileção eleitoral da esmagadora maioria do povo. De um povo que não duvido habite as redações e sedes de tais institutos, mas que pelas ruas só chamava a atenção pela ausência. Vinham acompanhados de mais outros tantos petistas mais discretos, ainda que identificáveis por adesivos partidários discretamente colocados à guisa de crachás. Um destes, aliás, ostentava orgulhoso um crachá de fiscal de urna do partido.

Em meio ao mar de amarelo-seleção que cobria as ruas, em que nossa sofrida bandeira ora disputava com a gravidade a fartura torácica de uma nem-tão-jovem senhora, ora recobria o farto pelame de um lulu de madame, o vermelho dos três orgulhosos avatares da classe média ideológica realmente atraía a atenção. Tanto que vi uns tantos quase-acidentes acontecerem, com gente que freava o carro para conferir se os olhos não os enganavam. Era como, diria eu, se houvesse gente vestida com brocados da Corte de Versalhes andando nas ruas: curioso, incongruente, fascinante, até.

Ao menos para mim – e tenho plena consciência do viés de confirmação com que filtramos pré-conscientemente os dados dos sentidos – não havia ali surpresa alguma. Foram muitos e grandes demais os escândalos que não se teve como evitar que chegassem ao conhecimento público, por maior que seja a hegemonia escarlate sobre a grande mídia. Ouvi da boca de muita gente pobre e via de regra desinteressada em política que havia sido enganada pelo Lula, e dele tinha tomado asco. Que ele era ladrão, amigo de ladrões e cercado de ladrões. Vox populi. Nesta eleição, mesmo, vim a saber de gente que se despencou horas a fio em transportes públicos abarrotados para ir votar contra o Lula, muito mais que a favor do Bolsonaro. Vi gente que via de regra não se importa em absoluto com política ir às urnas, e para chegar a elas gramar horas de espera por conta do retumbante fracasso da tal biometria, só para garantir a chance de digitar um voto para presidente contrário ao Apedeuta. Soube até de quem – incapaz de tampar o nariz e pespegar um bolsovoto, ao menos em primeiro turno – votou no tal “padre” que serviu de bolsoescada no debate final.

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“Tudo, menos Lula!” era o que as ruas gritavam, urravam à rouquidão. Exatamente o oposto do que, numa escalada que poderia parecer proposital não fosse a incompetência tão mais comum que a conspiração, sua suposta ascensão nas pesquisas de opinião parecia indicar. Ao contrário, até, diria eu: muita gente assustou-se e por isso tomou partido e resolveu lançar um bolsovoto ao ver os tais números lulistas subindo e subindo. E mais: misteriosa e fantasmagoricamentemente subindo sem que o tentaculoso Kraken de São Bernardo do Campo conseguisse encher uma praça e sem que ninguém no mundo real, fora das telas e das redações, abertamente o apoiasse. O máximo que se podia encontrar para somar-se àquele parco e numericamente limitado eleitorado ideológico da classe média urbana, em que muita soberba e pouca cultura levam inexoravelmente a achar qualidades até em Fidel, era um que outro pinguço disposto a causar.

Já o resultado final, oficial, incontestável até por não haver qualquer tipo de comprovação física dos votos dados, foi essa coisa tão curiosa, vejam bem os senhores. Votos alinhadinhos do pescoço para baixo na direita, com margens tonitruantes de vitória para os candidatos antilulistas, mas na cabeça, ah, na cabeça... Sempre no mar, misterioso mar, a cabeça dos votos contados foi de camarão, recheada de uma substância curiosa, incongruente, fascinante, até. Não me lembro dos detalhes da legislação pregressa que demandava votos coerentemente alinhados, mas posso garantir que esta eleição seria o maior festival de votos anulados. Afinal, como pode um governador capitalista de colar decalco e fortemente antilulista ganhar com 70% dos votos e ao mesmo tempo o amiguinho do Fidel igualmente ganhar, no mesmo eleitorado, na lide paralela para presidente? Comunista do pescoço para cima e do pescoço para baixo capitalista, direitista, ou mesmo bolsofascista, a crer na imprensa: eis o eleitorado brasileiro. Forte e curiosa coisa, que poderia até levar alguns a ver razões inomináveis em nossos tempos de glabra e lustrosa democracia.

É realmente uma pena que não se possa mais tratar abertamente desses fenômenos de possessão quase-demoníaca, em que o voto da população tem tanto de camarão, em que se convoca cadeia nacional de rádio e tevê na véspera da eleição para lembrar à ralé quem é o dono da bola, em que até o New York Times consegue perceber que há algo de podre no reino da Dinamarca (jamais no daqui, claro, mesmo por sermos uma pujante República e uma Democracia de dar inveja à Atenas clássica). Em todo caso, para o segundo turno serão corrigidos os algoritmos, arrã, das pesquisas. Não que as pesquisas não venham provavelmente, exatamente como aconteceu no crescendo do primeiro turno, somar-se a ataques tão desenfreados contra o bolsopresidente que acabam por deixar clara a parcialidade da mídia. Mas a meta, não atingida nesta eleição de chapa-camarão, poderá ser mais facilmente atingida sem que haja outras votações paralelas a iluminar a vontade do povo. E aí a meta será, como foi desta feita, diria eu, a mesma boa ideia inalcançada dos 51%. Nada humilhante, nada que não seja possível quando as pesquisas apontavam, do alto de sua impoluta veracidade, o empate técnico. Foi assim com a Dilma e o Aécio, direitinho assim.

Tristes tempos, os nossos, viu? Tristes tempos.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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