| Foto: Miguel Ugalde/Free Images
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Acabo de passar por uma experiência antropológica interessante, que ilumina bastante os horrores da medonha dicotomia que vem sendo importada da gringa para a nossa política. Uma senhora muito querida minha, que foi muito próxima a mim por longos anos e – derivando diversamente ao longo das décadas – tornou-se hoje vegana, psolista e o que mais vier junto, escreveu uma postagem sobre um livro recém-lançado, um belo fruto do trabalho de sua mãe, cientista renomada. Coisa muito boa e saudável, diga-se de passagem; se os filhos não derem o devido valor à obra dos pais, quem o daria? Comentei na dita postagem com uma pergunta de caráter técnico sobre o tema do livro, e ela, gentilmente, passou a bola para os coautores.

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E então, absolutamente do nada, veio ela lamentar que eu tivesse me tornado discípulo (!) do professor Olavo de Carvalho (!!). Espantei-me, claro, porque ainda que eu tenha tido ao longo dos anos uma relação de respeito e em muitos aspectos admiração para com ele, nenhum de nós dois jamais foi ou afirmou-se discípulo ou mestre do outro. Respondi-lhe dizendo isso. Daí ela afirmou que faria sentido eu me arrepender (!) neste momento (em que, diga-se de passagem, os bons frutos da ação política em que o professor Olavo combateu praticamente sozinho durante décadas estão se fazendo sentir, ou seja, um péssimo momento para tal negação, não fosse ela verdadeira).

Tentei mais uma vez explicar que não é esse o caso, afirmando ainda que ela parecia estar fazendo algo que infelizmente tornou-se comuníssimo dos dois únicos lados remanescentes no balcão de troca de insultos que a política brasileira se tornou: enfiar no mesmo saco tudo o que nos desagrada, considerando que tudo à nossa esquerda ou direita é igual, e igualmente péssimo e não merecedor de atenção. Daí a cancel culture que até o próprio Obama já condenou. Dei até como exemplo o fato de muitos hoje em dia tratarem como se fossem exatamente a mesma coisa o seu querido PSol e a ditadura norte-coreana, o que – convenhamos – é francamente um absurdo. Concluí dizendo que respeito a todos para ser respeitado, e procuro ouvir a todos. Afinal, é só da discordância que pode surgir algo ainda inaudito, um fato novo que possa nos fazer mudar de opinião e, assim, aproximar-nos mais da verdade. E é esta a minha monomania.

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Estamos, neste triste novo milênio incipiente, como os três macaquinhos da fábula, que não ouvem, não veem e não falam com quem é diferente

Como se para me dar razão, pulando de pato para ganso, ela me perguntou se deveríamos dar ouvidos também a nazistas confessos. Respondi-lhe (juro que daqui a pouco acaba esse memorial, que só está aqui para que possamos em seguida analisar objetivamente o fenômeno) que não, evidentemente, mas que isso é perfeitamente irrelevante, a não ser que ela estivesse tentando afirmar que eu, o professor Olavo ou quem quer que seja estivesse a fim de chacinar inocentes. Aliás, nem falei, mas seria igualmente irrelevante trazer à baila o Psicogordo norte-coreano como sujeito de diálogo. Daí, claro, entraram as marieles e outros entes de razão do imaginário esquerdista, à propos de rien, numa linha de “se não é isso é quase”, essas coisas da destruição de reputações por saltos laterais, analogia e culpa por proximidade real ou fictícia que infelizmente anda tão na moda. E a mim veio, como já seria previsível dadas as etapas anteriores do monólogo, a delirante acusação de ter-me tornado bolsominion.

Rindo, mostrei a postagem à minha “braça-direita”, socióloga de boa cepa, que comentou que pelo jeito a boa senhora nunca leu uma linha que fosse do que eu escrevo. Não duvido; Estamos, neste triste novo milênio incipiente, como os três macaquinhos da fábula, que não ouvem, não veem e não falam com quem é diferente. Entrou, então, de sola para acabar com qualquer tentativa de conversa educada o esposo dela, vociferando insultos e acabando de vez com o (pouco) respeito que ainda havia no ambiente. Mandei-lhe beijinhos de luz no coração e me retirei do recinto virtual.

Antes que me venha gente dizer “ah, a esquerda é assim”, todavia, lembro que o sinal poderia perfeitamente ser trocado. O mesmíssimo diálogo poderia ter-se dado entre uma senhora pertencente à tal “nova direita” e um intelectual que fosse por ela percebido como estando ligado à esquerda. É o caso, inclusive, do grande antropólogo brasileiro Antonio Risério, que já trabalhou nas campanhas presidenciais do Lula e declarou recentemente, em frase deliciosa, que “o fragmentarismo identitário-multicultural é produto do puritanismo anglo-saxão, do protestantismo ascético calvinista, correndo extremado e esbaforido nas baias do associativismo sectário”. E ele – do alto, ou do fundo, como preferirem, de sua participação nas campanhas petistas – tem toda a razão do mundo.

Vem do dualismo calvinista gringo o novo dualismo político brasileiro. Essa multidão de identidades fechadas nelas mesmas, em que quem é “de direita” não concede lugar de fala a quem é “de esquerda” e vice-versa, é fruto das miríades de agremiações que formaram a sociedade norte-americana, cada uma fechada nela mesma e infensa a simpatias para com outras.

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De princípio, no Nordeste americano, eram as cidadezinhas puritanas, de onde era expulso (ou queimado na fogueira – oi, fofas bruxinhas de Salém!) quem se afastasse da cosmovisão comunitária, em que o lugar de oração e o lugar de exercício cidadão eram uma única edificação: só é cidadão quem assina embaixo de tudo o que dita a seita, e só é da seita quem é cidadão. Aos poucos, este modelo, sob uma forma ou outra, foi se espalhando pelo imenso território paulatina e violentamente roubado aos índios, fazendo com que surgissem agremiações de todo tipo, por vezes dividindo espaço da cidade, mas raramente permitindo ou mesmo tolerando o diferente em seus meios rarefeitos.

Os pretos tinham suas denominações protestantes próprias, diversas daquelas frequentadas pelos brancos; os maçons dominavam e dominam a política; os descendentes desta ou daquela nação europeia ou oriental concentravam-se em bairros próprios, onde mantinham comércios estreitamente ligados à sua origem nacional, e por aí vai. Dentro de cada um destes espaços, de cada uma dessas unidades de pertencimento identitário comunal – “baias do associativismo sectário”, para Risério –, havia uma certa equidade que permitia (e permite ainda) um desempenho caritativo que não ultrapassasse jamais as bordas sectárias e o orgulho identitário que se afirma antes de qualquer outra coisa pela diferença (nenhum preto sequer quereria participar de uma comunidade eclesial branca, e vice-versa). Dentro deste sistema, como bem explica o bom Risério, faz sentido que mesmo abominações aberta e francamente racistas como a one-drop rule (segundo a qual quem tem um antepassado africano, por mais distante que seja e independentemente da cor de sua pele ou do formato de suas ventas e beiças, ou ainda dos caracóis de seus cabelos, é e só pode ser negro) sejam abraçadas por todos os lados: para os descendentes de africanos, é uma maneira de manter-se separado da sociedade “branca” e assim preservar suas especificidades culturais e nacionais. Para os “brancos”, um jeito de manter os pretos “no seu devido lugar”, entre outras nojeiras.

Vem do dualismo calvinista gringo o novo dualismo político brasileiro

E é isso que vem sendo importado no Brasil. Tanto os movimentos racistas ditos “negros”, que se dão ao direito de condenar o grande Gilberto Gil por conta da (absolutamente irrelevante, por óbvio) cor da pele de seus descendentes, como se o amor escolhesse cor, quanto os movimentos identitários de outros tipos, do LGBTFBICIA+ à própria “nova direita”, veem suas identidades como antes de mais nada negacionistas do Outro, do diverso. Eu sou o que não é o Outro; eu sou eu e ele não existe. A ideia, que deveria ser evidente, de que é conversando que se entende; a noção que construiu a nossa civilização, segundo a qual devemos tomar o que presta e abandonar o que não presta, ouvindo a todos e conferindo o que dizem com a realidade dos fatos, foram-se pela janela, como quem joga o bebê fora junto com a água do banho.

O resultado é o que vemos por aqui. Eu mesmo, que jamais me furtaria ao diálogo com o diferente (e só não dialogo com nazistas porque já estudei o bastante sua nefanda doutrina para a conhecer bem e, além disso, não os haver por aqui em quantidade suficiente para que mereçam alguma atenção como perigo real – estivesse na Alemanha, certamente quereria ouvir o que têm a dizer os membros do AfD, por exemplo), sou sempre atacado por ambos os lados. Aliás, faço destes ataques em boa medida a medida do acerto do que eu digo: se eu não incomodar nem a esquerda identitária nem a “nova direita” igualmente identitária e igualmente negacionista da alteridade como um bem, devo estar fazendo algo de errado. Se um dos lados me bater palmas enquanto o outro fizer bico ou tentar me “cancelar”, estou derivando perigosamente próximo aos escolhos e arrecifes compostos por montanhas de besteiras acumuladas sob um finíssimo verniz ideológico nessas novas identidades.

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Pois é isso a cancel culture: “cancela-se”, ou seja, finge-se que não existe, negando-se-lhe os direitos humanos mais básicos, como o de se pronunciar, todo aquele que pensa diferentemente. Cancela-se quem não assina embaixo de uma longa lista de supostos imperativos morais categóricos – que são tidos por acessíveis à razão desassistida na visão moral (ou antes pseudomoral) de base kantiana dessa importação norteamericana, o que faz com que quem não os aceita seja forçosamente burro ou mal-intencionado. E quem quer discutir com uns ou outros? Os burros não entenderão nada do que se lhes disser, e os mal-intencionados o perverterão. Melhor cancelá-los, mesmo...

E o “cancelamento” opera à esquerda e à direita. Na verdade, a volta foi tão bem dada que chegaram ambos ao mesmo (péssimo) lugar: o lugar de negação do diálogo, o lugar do “cancelamento”, do desrespeito, da coisificação do Outro. Pois “cancelar” é pior ainda que meramente recusar-se a ouvir: é recusar-se a admitir o lugar de fala, ou seja, a admitir a mais remota possibilidade de que aquela “não pessoa” possa ter algo pertinente a dizer, algo a acrescentar, de seu não lugar nauseabundo, de onde só pode sair fedor e imundície. Quando uma ativista negra-lésbica-transexual, ou o que for, nega ao sorveteiro da esquina o direito de se manifestar sobre algo que o afeta e interessa porque ele não é negra-mulher-transexual, ela faz exatamente o mesmo, sem tirar nem pôr, que alguém da “nova direita” que não quer nem ouvir o que um Risério tenha a dizer porque ele participou das campanhas do Lula. Ambos se negam peremptória e liminarmente a aceitar qualquer contribuição de quem for diferente, e ao fazê-lo negam de modo igualmente peremptório e liminar a humanidade do próximo.

Pois, afinal, ouvir e ser ouvido é o que faz do homem, este “animal naturalmente social”, verdadeiro homem. O homem difere das bestas-feras por ouvir e por falar. Por tentar convencer pela razão, não pelas fauces e garras. Mas quando se nega ao que é na prática basicamente metade das pessoas (ou seria, se esse bestialógico importado fosse mais fundo na sociedade brasileira, alcançando aqui as dimensões que alcança na americana; felizmente, isso é quase impossível. Trata-se antes de maluquice de classe média frequentadora do saite feices) o direito a ser ouvido, o que se está negando é que sejam gente. Judeus não eram gente para os nazistas, e é por isso que eles não tinham direito à voz. Ou à vida, aliás; e da voz à vida a diferença é de grau, não de essência, pois uma vida sem voz não é vida plena. Do mesmo modo, para a direita americana os criminosos condenados (à prisão perpétua por meio grama de maconha no bolso, que seja; e os há muitos) não têm direito à voz, e é tida como absurda a proposta que visa dar-lhes direito ao voto. Muitos, aliás, veriam com alegria uma epidemia que os dizimasse, tanto na direita americana quanto na sua versão tupiniquim.

Já houve, do mesmo modo, quem afirmasse que votos de “racistas” (no caso os eleitores de Trump, não os movimentos “negros” identitários; mas, como sempre, seria fácil trocar o sinal) não deveriam ser contados. E os votos de “reacionários”, para uns, deveriam ser tão “cancelados” quanto para outros deveriam ser os votos de “revolucionários”. Tanto faz como tanto fez. São opostos que se tocam, como dois loucos que, no planetinha do Pequeno Príncipe, andassem de costas para afastar-se um do outro até baterem as costas e esmagarem a rosa que ali florescia.

Nem Bolsonaro é a salvação da lavoura nem é um monstro. É uma imbecilidade rematada querer fazer dele qualquer um dos dois

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Pois a política é a arte da pólis. É a arte do convívio, do diálogo e do possível. Ninguém tem receitas de bolo que funcionem (que não funcionam as há aos montes), e ninguém jamais as terá, porque a natureza humana é complexa demais para receitas de bolo. Eu disse muitas vezes desde a época de campanha eleitoral que o Brasil precisava de um estadista, mas só o que tínhamos era um meme vivo. E o meme foi eleito, para bem e para mal, e fez coisas boas e coisas ruins, como aliás qualquer governante. Mas pelo menos ele não tem nem a intenção nem a capacidade de instaurar uma ditadura, como era e é ainda o projeto de poder petista. Só por isso ele valeu na ocasião como mal menor, e é muito bom que seja ele a enfiar os bolsocoturnos pelas bolsomãos; fosse o Haddad, estaríamos sustentando o desgoverno parasita de Maduro ou barbaridade do gênero, a somar-se a outras burradas equivalentes às atualmente bolsopresentes.

Mas nem Bolsonaro é a salvação da lavoura nem é um monstro. É uma imbecilidade rematada querer fazer dele qualquer um dos dois, seja associando-o a esperanças messiânicas como fazem seus seguidores mais entusiasmados (que, em seus delírios, chegam a revestir de cores escatológicas sua aproximação com o corruptíssimo governo atual de Israel), seja associando-o absurdamente ao nazismo, como faz a esquerda desde a eleição, quando saiu pintando suásticas por toda parte como se alguém de fora de seus meios pudesse confundi-las com manifestações de apoio ao meme vivo que acabou eleito. E nem é a esquerda composta por retardados mentais ou monstros de malignidade. Nem a direita, aliás. São – somos – todos seres humanos, capazes de heroísmos e grandezas, de vilezas e mesquinharias. E todos nós, humanos, filhos de Adão, apresentamos fartamente tanto uns quanto os outros. Ninguém tem o monopólio nem das boas intenções nem da boa prática, e, mais ainda, ninguém tem a capacidade de desenvolver por conta própria, sem que isso lhe tenha entrado no intelecto por um dos sentidos, novas percepções que o aproximem (ainda) mais da verdade. E sem esta aproximação, nada terá jamais jeito. Com ela já é difícil.

Conversemos. Sempre. É no diálogo que a verdade prevalece, e sem ele não há política possível.