“A 13 de maio, na cova da Iria, no céu aparece a Virgem Maria...”
Treze de maio é hoje, e hoje cantamos a Virgem galileia, tornada lusa no século passado. Esta data me faz sempre pensar nos famosos e crípticos dizeres da aparição: “Em Portugal se conservará sempre o dogma da Fé”. O dogma da Fé o conhecemos: é o Amor – causa primeira e final da elevação do homem à conaturalidade divina. Mas de que “Portugal” falava a Virgem, que certamente não se prenderia às besteiras e burocracias do triste século passado, contra cujos erros nos alertou tão claramente? No seu belo Fado Tropical, Chico Buarque canta – como sempre, movido pelas mais torpes razões à mais bela arte – a nossa unidade lusa. Apela à Terrinha, essa nossa província ultramarina separatista, que não seja “tão ingrata; não esque[ça] quem [a] amou e em [s]ua densa mata se perdeu e se encontrou”. E vaticina:
“Ai,
esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
[...]
E o Rio Amazonas
Que corre Trás-os-Montes
E numa pororoca
Deságua no Tejo”
Pois na cultura, no amor e no sangue corre o Amazonas para o Tejo, e vêm suas nascentes, mais que dos Andes, do mesmo Tejo: a língua franca falada nas margens do vasto mar de água doce que nos corre o Norte é a mesma última flor do Lácio. A belamente ibérica e reservadamente lusa cultura que nos move, nas tantas formas que toma do Oiapoque ao Chuí, é a mesma portuguesa.
Os passos do santo Anchieta pela costa, as missões de seus correligionários no Sul, as missões pregadas pelos frades no interior; é tudo isto parte da mesma missão de resgatar as almas perdidas que motivou a Reconquista ibérica
E, mais ainda, coisa que se esquece por aí, na triste mania de menosprezar-nos a lusitanidade, de nos colocar atrás de besteiras inglesas ou francesas: esta nossa cultura, esta mesma lusitanidade forte e modesta, é o mais lindo fruto da Reconquista. Oitocentos anos de duro labor, continuados nos nossos parcos quinhentos, para devolver à latinidade cristã a Hispânia, ao lado do norte africano perdida para os mouros. Pros mesmos mouros que Brasil afora são ritualmente combatidos ano após ano em tantas e tantas manifestações populares, com fitas, roupas, danças e mesmo instrumentos medievais. Os passos do santo Anchieta pela costa, as missões de seus correligionários no Sul, as missões pregadas pelos frades no interior; é tudo isto parte da mesma missão de resgatar as almas perdidas que motivou a Reconquista ibérica.
É um desses momentos históricos em que se veem claramente desígnios em muito superiores aos nossos, que no máximo os refletem imperfeitamente. A Reconquista concluiu sua tarefa ibérica primeira exatamente em tempo para transmitir a vasta impulsão de oitocentos anos às velas de Colombo. E destas às de Cabral. Dividiu-se então a Reconquista em duas partes; uma seguindo seu caminho natural de devolução à latinidade da delida Cartago, e outra trazendo a estas terras a bênção da cruz da Ordem de Cristo – continuação, por sua vez, da Milícia do Templo – que ornava as velas lusas. Na Batalha dos Três Reis, todavia, Dom Sebastião tornou-se ao desaparecer o Desejado das Gentes, que até hoje é ansiosamente aguardado por toda parte do Brasil profundo. Onde estava ele? Num lugar que surgira como colônia da nefanda Cartago, mas por Roma fora arrancada das garras sequiosas de sangue infantil de Moloque e nomeada Oppidum Novum – Vila Nova, exatamente como as Vilas Novas de Gaia ou da Campina Grande. Lugar este depois arrancado das tetas da loba romana e anexado à escuridão do crescente otomano, naquele momento combatido pelo Esperado. Era, ou antes seria, a continuação natural da Reconquista: relatinizar, recristianizar, recivilizar, em suma, o norte africano perdido para Bafomé.
Mas perdeu-se o fôlego e a força pela traição e sabotagem daqueles que, no Norte da Europa, iam aderindo em peso à heresia islamizante de Lutero. E, nela e dela, ao culto de Mammon. Ora, não se pode adorar a dois deuses; quem se volta para Mammon é como se se voltasse para Moloque, e, no fim das contas, é mesmo o que acaba por fazer. Perdido o Norte, perdida a retaguarda, os subúrbios, a periferia nunca latinizada da cristandade, nada puderam nossos antecessores fazer que voltar a outros campos, virgens, seu ímpeto libertador.
No México, o amor e os ardis da bela Malinche levaram Cortéz a juntar dezenas de milhares de soldados nativos às suas tão parcas tropas, derrubando de pirâmide em pirâmide os ídolos sedentos de sangue. No Brasil, a ausência de uma população assentada com rica cultura anterior a cristianizar fez com que fosse ainda mais difícil o processo. Ou, doutra forma, com que fosse mais fielmente luso seu resultado. Iam o santo Anchieta e seus companheiros a pé, com sua música, sua poesia e sua sabedoria do Deus do Amor juntando os poucos habitantes das matas, e ensinando-os a não comer gente, não matar e não mentir. E da Terrinha vieram uns tantos homens, juntando-se com as moças da terra, num tremendo enriquecimento mútuo em que elas aprendiam a cobrir suas vergonhas lisinhas (apud Caminha) e eles, a dormir em rede. Com elas.
E é hoje ainda o que temos: uma cultura que é lusa, por ser filha da Lusitânia. Uma cultura que é cristã, por ter sido fundada à sombra das velas marcadas com o sinal da Cruz. Uma cultura que é, em tantos aspectos, medieval, por ter sido preservada pela graça divina da apostasia em massa das partes não latinizadas, ou mal latinizadas, do Antigo Continente. Guardamos aqui o coração medieval da Europa. Lá, agora até mesmo mais ao sul, até mesmo onde ainda são faladas formas vulgares do latim, como a nossa, perdeu-se a alma. Os casaizinhos não têm fé, e por não terem fé falham até em ter filhos. Só quem tem filhos por aquelas bandas são os mesmos mouros que nós aqui combatemos em dança e no encanto do canto popular.
Mostrou-nos Mestre Suassuna estas tantas verdades, e quem tem olhos para ver, quem consegue fazer cair das vistas as escamas das mentiras modernas, pode percebê-las em toda parte. Somos uma coisa só, uma Pátria só, Brasil, Portugal e Algarve. E o coração desta imensa nação lusitana bate talvez com mais força em Pernambuco, Minas ou Rio que na cansada Lisboa. A negação deste destino (deste fado!) de união é uma das razões históricas por que o Rio de Janeiro se perdeu, um dos elementos que possibilitaram ao patético aprendiz de caudilho Brizola dinamitar as bases da Cidade Maravilhosa. Enquanto o Rio de Janeiro era Distrito Federal, ou mesmo Estado da Guanabara, estava como um doente num leito de hospital, recuperando-se duma amputação. Foram-lhe amputados Portugal e Algarve, que mesmo unidos ficaram acéfalos, mantidos quase da mesma forma em respirador artificial por falta de seu imenso corpo tropical.
Temos aqui uma cultura que é lusa, por ser filha da Lusitânia. Uma cultura que é cristã, por ter sido fundada à sombra das velas marcadas com o sinal da Cruz. Guardamos aqui o coração medieval da Europa
Angola, Goa, o que fosse, por maior que fosse o sonho português de vê-los como partes reais do mesmo imenso Portugal, não tinham como sê-lo. Lá já havia gente demais quando chegaram as naus, e o que se pôde fazer foi apenas uma casquinha, uma elite lusa sobre mares agitados de antigas culturas, amores e desamores incompreensíveis aos sensíveis navegadores. Eram, por menos que se o quisesse admitir na Terrinha, colônias. Tanto que, com as independências unilaterais dadas pelos mesmos doidos que o Chico canta, a “casquinha” de colonos lusos teve de fugir. E fugir, claro, para Portugal; ou o de lá, ou o de cá. O mecânico da minha moto e seu pai músico vieram para cá de Angola, onde a pele clara subitamente se tornara risco de vida. O dono da padaria onde tomo café combateu no Timor. Acá do Atlântico é o Imenso Portugal aonde vieram dar tantos colonos ansiosos de voltar à Pátria, mas sem lugar na Europa moderna.
Continuava aqui o Rio de Janeiro, capital natural do mesmo Reino unido, coração pulsante da lusitanidade que se espalha pelo interior deste território de dimensões continentais e devolve alguma vida à cansada província separatista no Ultramar. Soldar a Corte carioca ao resto do Brasil, como se diferença não houvesse, negando-se-lhe até mesmo a condição secundária de capital do que resta da lusitanidade que nos dá o ser, foi um crime. Como igualmente foi outro crime tentar subjugar nossa província ultramarina separatista, em que o Algarve não se separa mais de Portugal, à Alemanha e França numa mal concebida União Europeia – um Felipe II d’Espanha impessoal e tremendamente piorado: ateu, moderno e blasfemo – que negou desde a origem o que a fizera europeia: a cristandade.
Orgulho-me de que foi meu avô a propor e levar à promulgação a lei da dupla cidadania de brasileiros e portugueses, que afinal lusos somos todos. Orgulho-me de ser compatriota de Camões, de Salazar e do Se’o Manoel da Padaria, além de sê-lo de Suassuna, Gerardo Mello Mourão, Drummond, Pixinguinha e Érico Veríssimo. Somos uma vasta terra, uma vastíssima nação ou mesmo império, mas não, como canta o Chico, um império colonial. Não; somos a continuação lusa da Reconquista, que se comunica na Última Flor do Lácio, que venera a Senhora da Conceição, que também é Senhora do Carmo. E de Fátima ou Aparecida, de Belém de cá ou de Belém de lá. Aqui não há, como em Angola ou Goa, colonos e colonizados. Somos todos lusos, todos, de todas as cores e formatos de olhos, nariz ou pé, unidos numa cultura que nos serve agora e servirá mais ainda em breve como colete salva-vidas nas procelas da destruição da Modernidade que, armada em Napoleão, foi vencida pelo ardil de Dom João, que no susto para cá trouxe Portugal e deixou o corso a ver navios.
Somos, sim, um imenso Portugal, e, aqui quanto na Terrinha, conservamos intacto o doce dogma da Fé. E viva Nossa Senhora de Fátima!
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