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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Um modelo de pesadelo

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Como já escrevi aqui ad nauseam, para desespero do meu solitário leitor, a Modernidade é um pesadelo de duzentos anos de que a sociedade está finalmente acordando. Foi um estranho, estranhíssimo, período de decadência terminal da civilização ocidental, em que – contrariando toda praxe histórica – a classe moralmente mais baixa numa sociedade, os mercadores, tomou o poder. Em qualquer sociedade civilizada o poder sempre esteve na mão dos que se dedicam à sabedoria, seja direta ou indiretamente. Neste caso, ele fica nas mãos dos que se dedicam ao ofício das armas, porém sujeito ao poder de veto dos dedicados ao estudo; era a situação no Medievo europeu.

A partir dos maus ventos trazidos há quinhentos anos pela pseudorreforma protestante, ocorrida e fomentada exatamente pelos escravos do vil metal, todavia, foi o oposto que ocorreu. Na primeira fase desta dissolução decadencial da sociedade ocidental, o papel eclesial de aconselhamento e veto dos governantes foi negado. Assim foi criado o medonho absolutismo, em que o Rei concentrava todo o poder – inclusive o de determinar o certo e o errado, o mal e o bem, como na tentação que levou à Queda nossos primeiros pais – e o empregava em favor dos mercadores que o sustentavam no trono. Em seguida os intermediários foram eliminados, com a ascensão direta e sanguinolenta da burguesia, a classe mercantil, viciada em lucro e inimiga da honra. O Terror francês, que começou decapitando os nobres e clérigos numa tentativa social de patricídio, evidentemente acabou por decapitar também até mesmo os que montaram as guilhotinas.

E foi assim que o mundo caiu neste pesadelo que hoje se desmancha como a bruma da manhã quando banhada pelos raios do sol. Digo “o mundo”, não apenas “o Ocidente”, por ter o pesadelo se espalhado por toda parte, levado pela mais pura ganância do vil metal. A pobre e sofrida Índia, por exemplo, antes de tornar-se colônia britânica foi colônia duma companhia comercial inglesa, a Companhia das Índias Orientais. É, mutatis mutantis, como se a Microsoft invadisse a China e a tornasse propriedade particular de Bill Gates. Além da exploração direta da expansão colonial, sem qualquer preocupação lateral que fosse com o bem-estar dos corpos ou almas dos invadidos, houve outras formas paralelas de a Modernidade infernizar o resto do mundo. A certeza moderna da superioridade absoluta de seu modo (pesadélico) de organização social, bem como do “Encargo do Homem Branco” de dominar a todos os demais, por exemplo, levou à criação ou reconfiguração revolucionária de Estados “nacionais” que nada têm a ver com as culturas várias atropeladas por tal processo. Bem como, claro, a simples absorção ou invasão de terras habitadas por antigas civilizações, como no Havaí. Até mesmo o nefando tráfico de drogas altamente viciantes foi uma das bandeiras modernas, levando a Inglaterra (de novo ela!) a exigir, pela força, que a China lhe permitisse vender livremente o ópio que produzia em sua colônia indiana. É como se a Colômbia obrigasse pela força das armas algum outro país a legalizar o uso “recreativo” do crack para ter onde vender sem problemas o veneno que produz.

A amoralidade da Modernidade, produto principalmente dos falsos sistemas morais produzidos ainda durante a fase de ascensão da classe mercantil ao poder, todavia, por óbvio, não se limitava à política internacional. Ao contrário: ela, antes de qualquer outra, foi uma apresentação da mesma pseudomoralidade burguesa que visava legitimar o ilegítimo (a sede de lucro, os juros, a escravização de inocentes…) e eliminar as legítimas demandas duma moral viva, como a caridade pessoal e o respeito à dignidade essencial de todo ser humano.

O Ocidente, a duras penas, depois de abraçar a Religião cristã, lograra tornar-se a primeira sociedade na História humana a eliminar a escravidão. Com a Modernidade, evidentemente, ela voltou. Afinal, ela dava lucro, e bastava aos abastados mercadores europeus fingir que não sabiam que suas imensas fortunas vinham do suor e sangue de pessoas traficadas e vendidas como se bichos fossem. Escravizava-se gente nas colônias, mas não nas metrópoles; coisa muito prática, pois o que não veem os olhos tampouco vê o coração.

A essência primeva, o cerne, o núcleo duro da Modernidade pode ser encontrado, como sempre, em sua filosofia. Costumo dizer que a filosofia é inescapável, mas pode e deve ser examinada para evitar que se abrace algo que nos leve a contradizer a experiência do real. A filosofia moderna, entretanto, caracteriza-se mais que tudo por sua recusa persistente em encarar a realidade. “Penso, logo existo”, a famosa frase de Descartes, implica em não se poder ter certeza da existência do próprio braço (sic!), da casa em que se está, do próximo que morre de fome ou do distante nativo escravizado numa colônia. Tudo, na Modernidade, tem uma aura de fantasia, e a fantasia – o pensar imaginativo humano, tido por Descartes como prova da própria existência dum ser pensante que seria ele mesmo – é que faz as vezes da realidade. E foi daí que começaram as utopias mais delirantes, todas partilhando dum detalhezinho ínfimo em comum: a necessidade de mudar a natureza humana real, modelando-a ao cogitado ao invés de ter o real como parâmetro do acerto da cogitação. A verdade é a adequação da ideia à coisa; a Modernidade é a tentativa de adequar a coisa à ideia, de dar carne à mentira como encarnou-Se a Verdade.

Na Modernidade, portanto, a ideia expressa como ideologia prevalece sobre a realidade, e a fantasia utópica torna-se a medida da realidade, ao invés de ser confrontada com esta para que se lhe possa verificar o acerto. Não; não há realidade na Modernidade senão o delírio, a fantasia de um futuro de progresso infinito garantido pelo avanço duma técnica que faz as vezes de ciência. Daí, por exemplo, que ao criar o espiritismo L. H. Rivail se tenha apropriado dos vaguíssimos termos do que passava então por ciência (“fluidos”, “energias” e quetais), exatamente como os picaretas de hoje abraçam o “quântico”, determinando ainda que seus fantasminhas iriam progredindo, melhorando, de encadernação em encadernação. “Progredir sem cessar, eis a lei”, está em seu epitáfio e no cerne de seu delírio tão moderno.

Ao contrário do que ocorrera com praticamente toda sociedade anterior, a “Era de Ouro” da Modernidade situava-se não num passado remoto, sim num futuro tão próximo que quase se lhe podia agarrar. E isto, claro, fazia dos modernos, dos brancos ocidentais, os reis da cocada preta. Os evoluídos. Os sábios. Daí também, claro, a invenção moderna das “raças”, cuja única razão de ser era o estabelecimento duma escala arbitrária de valor ou “evolução” dos povos. Nela, obviamente, os “sábios” modernos ocidentais estariam no topo. Já as pessoas que eles escravizassem forçosamente situar-se-iam suficientemente abaixo deles para que a escravização parecesse (aos europeus, claro) ser-lhes bom negócio, comparado com abandoná-los à quase-animalidade irracional que lhes seria própria. Mais valeria ter as mãos decepadas por um colono belga como punição por “preguiça” que nunca ter a chance de ver uma locomotiva, seria o raciocínio.

O auge deste horror todo, a cereja deste bolo, tem tempo e lugar. Vimos já que os horrores modernos atingiram praticamente todo o mundo. Seu cerne, todavia, situou-se nos EUA, o único país fundado a partir duma moderníssima ideia, não em torno de uma noção mítica de nação propositadamente projetada para o passado. Aliás, isto de projetar pro passado as próprias fantasias é outra moda moderna: tanto os mórmons quanto os maçons, para dar-se fumaças de antiguidade, disseram-se citados em textos hieroglíficos egípcios a todos ilegíveis. Quando, porém, Champollion descobriu como os traduzir, revelaram-se eles vulgares recibos de compra e venda! Os EUA foram – e são ainda – o primeiro dentre todos os territórios centrais do novo Ocidente moderno, que se deslocou a oeste do território da antiga Cristandade para as terras norte-americanas devastadas e dominadas pelos anglos. O “sangue nórdico” – que, curiosamente, é o que mais elementos traz do Homem de Neanderthal –, não mais a cultura de Atenas, Roma e Jerusalém, passou a ser a nota maior da Modernidade.

Sendo, como foi, a modernidade antes uma fantasia que a realidade, para que entendamos perfeitamente o que foi o seu auge é preciso que afastemos o véu da fantasia, para ver a feiura e as multidões de baratas que sob ele habitam. Ao mesmo tempo, contudo, faz-se necessário que minuciosamente examinemos a trama deste mesmo véu, para que possamos identificar com quê se ocultou a realidade por estes dois longos e tristes séculos de genocídios. O auge da Modernidade, assim, encarnou-se, na medida em que tal coisa é possível para uma fantasia, na classe média branca americana. Aquela mesma dos anúncios de eletrodomésticos e de carros com rabos de peixe. Aquela mesma cuja amoralidade e cujos tabus foram tão violentos para com seus próprios filhos que as mesmas criancinhas que nos anúncios eram representadas boquiabertas diante da nova geladeira ou automóvel com rabo-de-peixe tornaram-se hippies ao crescer. Foram para Woodstock. Dedicaram-se ao sexo “livre” como hobby e vício. Entupiram-se de drogas. Recusaram-se a lutar no Vietnã.

Esta doentia fantasia burguesa, porém, esta idolatria duma utopia mítica dos anos cinquenta americanos, infelizmente se vem espalhando como se bom modelo fosse. Até mesmo aqui nos trópicos. Até mesmo entre gente católica, que deveria ser mais esperta que isso.

Vejamos então, por partes, do que ela é composta, para que possamos ao mesmo tempo examinar o véu e levantá-lo. A primeira coisa que chama a atenção naquele discurso estético (ou estética discursiva) é a negação completa da família tradicional. A família natural é a continuação dos ancestrais, unindo todas as gerações vivas, preferencialmente debaixo do mesmo teto, para que os mais velhos sirvam de exemplo para os mais novos. Já a estética ultraburguesa do modelo de pesadelo em tela nega o idoso. Elimina os avôs e as avós, tios, tias, bisavós, tias-avós, o que for, subentendendo-se que eles são um passado vergonhoso que não tem lugar junto à microfamília nuclear da era nuclear. Gente a ver por piedade, no máximo uma vez ao ano. As milhas de asfalto que passaram a separar avós e netos, tios e sobrinhos, pais e filhos, são tão longas que poderiam perfeitamente ser verticais, como uma nova Muralha da China a esquartejar cada antigo clã. Seria a completa atomização da sociedade não fosse o fato de haver aquele pequeno núcleo de pai, mãe, e um casalzinho análogo de pimpolhos.

O núcleo, todavia, aquela mônada socialmente isolada (numa casa com cerquinha branca num subúrbio, com um carrão na garagem), é uma tirania. Ninguém ali tem voz, senão o Homem da Casa. A prisão doméstica em que a mulher era necessariamente mantida na Modernidade, decorrente da separação operada na Revolução Industrial entre o local de trabalho e o lar, atingiu então seu auge absoluto. Metade da espécie humana via-se condenada a passar paninhos em móveis por toda a vida, numa casa distante de tudo e de todos; uma prisão total, tornada ainda em panóptico foucauldiano pela onipresença de enormes janelas e pela ausência de altas muralhas. Quem ia à rua era o homem, e a mulher era literalmente considerada deficiente mental. Mero objeto reprodutivo e faxinante.

O consumismo, então em seu período áureo e primevo, lançava a cada ano ou par de anos um novo produto “indispensável”, que realmente era adotado por todos e realmente modificava o modo de viver que antes dele vigorara; mais tarde apenas o smartphone teve tanto impacto. As pobres mulheres, trancadas em suas casas distantes das ruas, não tinham outra ambição possível que não “keep up with the Joneses”, ou seja, manter um nível de consumo e de compra de eletrodomésticos, carro – o que quer que viesse a ser inventado, propagandeado e comercializado – equivalente aos vizinhos. Ao marido competia levar para casa os dólares necessários. E por isto, claro, ser recebido por uma quase-escrava, que lhe serviria uma bebida alcoólica (depois de ela mesma, claro, passar o dia bebericando para não enlouquecer), ligaria a novíssima tevê e partiria incontinenti para a cozinha para esquentar coisas enlatadas para alimentar seu amo e senhor, hipnotizado diante dos filmes de caubói e dos sucessivos intervalos comerciais.

A mudança das mônadas microfamiliares da classe média branca americana para os recém-criados subúrbios foi a derradeira pá de cal na já bastante limitada liberdade da mulher burguesa. Camille Paglia diz, com razão, que quando as mulheres pararam de lavar roupas em conjunto na beira dos rios elas perderam sua maior oportunidade de conspiração e ação coletiva. Nas cidades da etapa imediatamente anterior, no entanto, mesmo não havendo ocasião tão propícia para a união das mulheres, havia convivência real na rua, olhando as crianças brincar. No subúrbio americano, por outro lado, não há rua comparável às citadinas. A baixíssima densidade demográfica suburbana fazia com que a probabilidade de haver crianças aproximadamente da mesma idade no mesmo quarteirão fosse muitíssimo menor que na cidade, mesmo sendo a geração que nasceu naquela época muito mais numerosa que as anteriores e ulteriores – foi o dito Baby Boom, a explosão de bebês. Outro elemento do consumismo que logo surgiu foram as bicicletas, indispensáveis para que as turminhas de crianças pudessem encontrar-se. Quando aquela geração de crianças chegou à adolescência, surgiu nela o mito do Rebelde Sem Causa a circular incessantemente de automóvel ou lambreta de lanchonete em lanchonete. A pé já não seria possível haver vida social, e o transporte público era notável apenas pela total ausência.

As mulheres, então, justamente por isto – já que dirigir era primordialmente uma atividade masculina – não tinham vida social alguma. Exatamente como não tinham oportunidade alguma de dedicar-se a algum ofício, estudar ou mesmo trabalhar ao lado do marido num empreendimento familiar, como sempre ocorreu em qualquer sociedade normal. Com as escolas de tempo integral sequestrando-lhe os filhos por até nove horas ao dia, a mulher vivia numa virtual prisão solitária, na mesma casa cuja responsabilidade lhe caía totalmente nos ombros.

Aliás, mais vale especificar que se trata apenas e tão somente da mulher branca. Este modelo de pesadelo que hoje vem sendo vendido até mesmo em meios católicos, este modelo revolucionário e destruidor que vem sendo proposto como encarnação do conservadorismo, era exclusivamente reservado à “raça branca” americana. E esta “raça”, diga-se de passagem, ainda não incluía os nativos da Europa latina e meridional. Um grego, italiano ou espanhol não era considerado parte dela, e jamais conseguiria comprar ou mesmo alugar uma casa nos subúrbios reservados aos tais “brancos”. Afinal, só mereciam o título aqueles cuja ascendência fosse indiscutivelmente norte-europeia. Os bairros eram – e continuam sendo – separados por “raça”, com o que na prática acabavam por ser nações diferentes, uma rica e suburbana e as demais pobres e urbanas. A distância geográfica entre uma e outra poderia não ser grande, mas nenhuma forma de convivência era possível. Até mesmo as escolas eram segregadas, com escolas (boazinhas) para “brancos” e (péssimas) para os “de cor”. Até mesmo os descendentes de orientais, mesmo que nascidos nos EUA, só passaram a poder receber cidadania americana em 1952.

O nível de barbárie do racismo de lá então, para um brasileiro, chega a ser difícil de conceber. Apenas mais tarde, com o auxílio de judeus do norte dos EUA (cuja consciência do horror do racismo despertara com a revelação do Holocausto, e que haviam passado a ser percebidos como “brancos” pouquíssimo tempo antes), os movimentos pelos direitos civis dos pretos começaram a diminuir alguns dos aspectos mais tenebrosos do sistema segregacionista vigente principalmente no Sul. O americano branco de classe média – uma classe média que atingiu então sua maior proporção na população, incluindo trabalhadores que no Brasil jamais chegaram a atingir tal classe e que lá não mais lhe pertencem, como maquinistas, mecânicos, operários industriais, motoristas e outros – simplesmente não tinha contato algum com pessoas de outra “raça”. Para ele era perfeitamente possível com um salário de operário fabril sustentar uma família, comprar uma casa no subúrbio e trocar de carro de tantos em tantos anos. Já a um americano pertencente a alguma minoria “racial” nada disso poderia ocorrer, nem nos sonhos mais fantásticos. Para estes a precariedade e a exploração continuavam a ser a regra inescapável.

O “sonho americano” da casa no subúrbio para abrigar a revolucionária microfamília consumista, assim, era reservado a uma parcela determinada, determinadíssima, da população. Uma pessoa “de cor” não poderia comprar ou alugar uma casa num subúrbio, mesmo que tivesse dinheiro para tal. E a regra era que não tivesse. Ao contrário, até: recentemente se começou a estudar mais a sério, nos ambientes acadêmicos, as determinações administrativas municipais e informais consensuais entre os incorporadores e corretores de imóveis daquela época. Salta então aos olhos que os defeitos deletérios da prática conhecida como “redlining” (na prática a formação e manutenção proporcionais e sistemáticas de guetos separados das partes “brancas” das cidades por uma “faixa escarlate” virtual) até hoje afetam negativamente as minorias. Como o tal “sonho [branco] americano” envolvia a ubiquidade do automóvel, datam daquela época obras de viadutos e vias expressas cujas localizações foram escolhidas a dedo para aumentar o isolamento dos guetos reservados às “raças” menos favorecidas, negar-lhes acesso a parques e áreas verdes, e isolá-las até mesmo da vista da nova classe média branca. Como sempre na Modernidade, o que os olhos não veem o coração não sente.

Devido à enorme quantidade de divisas estrangeiras que os EUA recebiam no pós-guerra tanto como reparação paga pelos países derrotados quanto como quitação de empréstimos bilionários feitos para a compra de armas americanas pelos Aliados, nunca os EUA foram tão ricos. Além disso, naquele tempo eles ainda eram um país produtivo, em que de tudo se fabricava, ainda que em fábricas pertencentes a brancos e empregando apenas gente da mesma “raça”. Os sindicatos, então fortíssimos e conhecidos por seus métodos pouco ortodoxos (decorrentes do fato de serem em grande medida controlados pelo crime organizado) faziam com que praticamente todo operário industrial branco tivesse garantido o direito a aposentar-se com um bom salário, não ser demitido sem justa causa, etc.

Aquele momento de extrema riqueza (sustentada, convém lembrar, pela miséria dos países destruídos pela guerra mas mesmo assim forçados a pagar fortunas aos EUA) tornou também possível o que o historiador Ira Katznelson definiu como “ação afirmativa para brancos”. Trata-se do famoso “G. I. Bill”, legislação que garantiu aos ex-combatentes brancos enormes benefícios, como crédito fácil e barato para a compra de casa própria (no subúrbio…), estudos médio, técnico e superior gratuitos, subsídios a juros baixíssimos para compra e montagem de fazendolas e outras coisas do gênero. Nada disto, claro, estaria ao alcance dos ex-combatente “de cor”. Tratou-se, assim, duma situação social extremamente anômala, insustentável em quaisquer outras circunstâncias e marcada pela injustiça para com todos os que não tivessem tido a sorte de nascer da “raça” privilegiada. Mesmo que moralmente fosse boa (e não era), mesmo que não fosse revolucionária (e era), continuaria a ser uma situação insustentável em qualquer outro contexto.

Para piorar a situação, a moral burguesa que então atingia seu auge é a antítese da moral cristã. É uma pseudomoral de mercadores, uma pseudomoral de hipócritas, em que tudo o que importa é a aparência. Vimos recentemente no Brasil o caso da “pastora” autodeclarada que mandou assassinar o próprio marido por crer que um assassinato mantido em segredo seria melhor que um divórcio público; é um excelente exemplo do que acabo de apontar. A pseudomoral burguesa surgiu como forma de legitimar o lucro ilícito, que a doutrina cristã sempre condenara. Para fazê-lo, o “truque” é semelhante ao que até hoje ainda é feito nas seitas caça-níquel que proliferam em portas de garagem Brasil afora: determinar uma curta lista de “pecados”, todos – claro! – abomináveis, sem gradação nem hierarquia, e todos facilmente evitáveis. Fumar um cigarro ou beber uma cervejinha ao almoço são tão graves quanto matar um inocente ou estuprar uma criança. Por outro lado, o crime que permanece secreto “não conta”; o importante, como disse, é manter as aparências, evitar afugentar a freguesia comercial.

Dentre as coisas mais difíceis de manter secretas, claro, está a concepção e geração duma nova vida. Uma mulher grávida está evidentemente em estado interessante, e um filho que pareça mais com o vizinho que com o legítimo esposo da mãe é uma prova viva de adultério. A pseudomoral burguesa, assim, sempre disposta a “olhar para o outro lado” quando um comerciante defrauda seus clientes ou quando é negada em ato a dignidade humana dum pobre, dum órfão ou duma viúva, horroriza-se, rasga as vestes e ostraciza quem cometer um pecado contra a carne. Ou, melhor dizendo, a mulher que o fizer; afinal, como homens não engravidam, suas safadezas no mais das vezes não vêm a público.

Este triste sucedâneo de moral, destarte, tem como nota maior a sua genitalidade; é uma pseudomoral que trata como pecado praticamente só o “mau comportamento”, e o mau comportamento feminino. Enquanto o rapazola podia até mesmo ser levado pelo próprio pai para sacrificar sua valiosa (aos olhos de Deus, claro, não da burguesia) virgindade num prostíbulo, a moçoila era malvista se deixar que se entreveja um joelho – afinal, suas rijas carnes têm o dom de atrair o interesse sexual dos rapazes, e isto poderia levá-la a ganhar uma indisfarçável barriga. Não apenas é nesta visão doentia o pecado sexual quase que algo exclusivo da mulher (a não ser que haja algum escândalo extremamente público da parte dum homem, claro, pois o que é público é sempre grave), como a culpa é sempre dela. Ela é a tentadora, a meretriz, a jezebel de subúrbio que, com seus maléficos poderes de atração, “perverte” o rapaz que se iniciara sexualmente numa casa de tolerância sob os aplausos do pai.

Daí, inclusive, a minha preocupação em relação aos católicos(!) brasileiros(!!) soi-disant conservadores(!!!), ou mesmo tradicionalistas(!!!!), que pregam a perversão pseudomoral burguesa com o disfarce de “modéstia católica”. Os fanáticos revolucionários do “apostolado da fita métrica”, contabilizam o pecado da pobre mulher (sempre é ela que sofre…) em termos de centímetros ou mesmo de percentual do corpo coberto, e com isso colocam-se a contrapelo da moral cristã. Da dignidade infinita da mulher. Da família. Da vida em sociedade. Ainda por cima, ao situar-se como um tumor maligno na fronteira da Igreja com o mundo, seu contratestemunho, sua proposital busca sectária e imodesta duma aparência distinta da dos demais, afastam da Igreja as pessoas de bom senso que dela vinham se aproximando.

Os rapazes, viciados na psicodelia antinatural do onanismo compulsivo, jogam nas costas das moças (muitas das quais fazem, paradoxalmente, da tal “modéstia” uma manifestação da pior vaidade e do mais negro orgulho) toda a culpa de seus vícios. O sublime véu paulino deixa de ser uma forma de apagar-se para se transformar em atestado de superioridade. A dignidade feminina é negada em ato pela presunção de que sua carne, santificada pela Encarnação do Verbo, pertence aos demônios. As bem-aventuranças, cerne e manifestação palpável da moral cristã junto aos mandamentos de amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo, são ignoradas ou mesmo abertamente rejeitadas em prol duma fixação com o controle da supostamente satânica sexualidade feminina.

Ora, não há como perceber o quanto é absurdo tudo isto quando é ninguém menos que o Doutor Angélico, São Tomás de Aquino, a nos ensinar que – justamente por ser a pulsão sexual a mais forte dentre as fomes desordenadas do homem marcado pela Queda – os pecados contra a carne são os que mais facilmente são perdoados pela Misericórdia Divina. Isto, aliás, acaba por ser a sorte dos onanistas compulsivos, que parecem ter dificuldade em dar-se conta de que moralmente o onanismo é muito pior que a fornicação por ser contrário à natureza. Do mesmo modo, Santo Afonso de Ligório, o Doutor Zelozíssimo, define a modéstia como a adequação ao que é normal na sociedade em que se vive. Um seu exemplo – que em nossos tempos parece extremo – é que as mulheres que vivam numa sociedade onde seja normal andar com os seios completamente à mostra pecariam por chamar a atenção sobre elas mesmas ao tampá-los, mas não pecariam em absoluto se sempre passeassem de maminhas ao léu.

Mas não. Danem-se os Santos, danem-se os Doutores, e viva a fita métrica! A pseudomoral burguesa requer o controle extremo da sexualidade feminina, requer até mesmo a diferenciação sectária (logo imodesta) entre seus praticantes e a “ralé” donde surgem os santos verdadeiros. Daí as moças fantasiadas, orgulhosas da atenção que atraem, portando um véu como o vaidoso ostenta uma medalha e cobertas de metros e mais metros de tecido de sofá em nosso clima tropical. Daí o desinteresse completo em dar de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede, mesmo sendo o faminto, o pedinte, o doente ou o preso Deus nosso Senhor novamente a caminhar entre nós. Daí a preocupação imensa com a forma da liturgia e com a aderência compulsiva às rubricas, bizarramente simultânea ao pecado contumaz contra o Quarto Mandamento cometido ao ver no sacerdote mero fornecedor de sacramentos, ao negar ao Bispo o tríplice múnus de ensinar, governar e santificar e, mais ainda, ao tratar o Santo Padre como um seu mau empregado ao invés de como o pai que ele é. Tudo isso é imodesto ao extremo, tudo isso é alheio, completamente alheio, à Fé e à Moral cristãs.

A Revolução não é nem pode ser contrarrevolucionária, e a pseudomoral hipócrita da nefanda burguesia não pode ser tomada por moral católica. Aquele ambiente viciado, insalubre e promíscuo do tempo e lugar mais fortes da Revolução é o que devemos evitar, não um exemplo a seguir. Veja-se, ao contrário, a Mulher Forte do capítulo trinta e um do Livro dos Provérbios. Vejam-se as tradicionais famílias multigeracionais de nossa cultura. Leiam-se os escritos dos Von Hildebrand e de Santa Teresa Bendita da Cruz (no século Edith Stein). Viva-se a Fé no mundo real, não numa fantasia burguesa doentia. E, claro, principalmente: tenham-se as Bem-Aventuranças como manual primeiro de conduta.

E que Deus nos ajude.

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