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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Comportamento

Veganismo atroz

(Foto: Couleur/Pixabay)

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Uma senhora foi condenada à prisão perpétua nos Estados Unidos por ter matado de fome o próprio filho. A pobre criança, com 1 ano e meio de idade, pesava o que uma criança deveria pesar aos 7 meses. Dois dos irmãos da vítima, de 3 e 5 anos, também apresentavam sinais de desnutrição grave. Não se tratava, todavia, de mera crueldade. Não; a coisa era bem pior. A mãe assim maltratou os filhos, matando um deles, devido a suas tresloucadas crenças religiosas. Ela era vegana.

O veganismo é uma falsa religião criada por pessoas que – como qualquer ser humano – querem, precisam, de religião, mas não têm a humildade de buscar a verdade, de procurar aproximar-se do Criador. Tal perversão é, na verdade, a antítese da verdadeira religião. Em vez de levar à consciência da própria pequenez diante da grandeza divina, o veganismo leva à vaidade e a um sentimento de superioridade que só encontra igual histórico no puritanismo do século 17, de que aliás descende diretamente.

Já dizia Chesterton que o louco é quem perdeu tudo, menos a razão. Esta definição se encaixa como uma luva no veganismo, esta forma de loucura religiosa que tanto mal faz a tantas almas e a tantos corpos. O veganismo parte de uma premissa totalmente absurda e procura levar aos últimos corolários lógicos tal premissa, exatamente como um louco que julga ser um cão e por isso passa os dias coçando a orelha com o pé. O vegano é, via de regra, guri de apartamento, mais apartado do resto da Criação que qualquer ser humano teria podido se apartar ao longo de toda a história humana. Assim preso em sua realidade de telinhas e ângulos retos, ele toma todo e qualquer animal pelo Mickey, e se recusa a perceber a intrincada cadeia de interdependências que movimenta e mantém a vida no planeta. Roubar do Mickey, raciocina o pobre iludido, seria asqueroso. Coisa de Mancha Negra, mesmo. Assim, para ele, ordenhar uma vaca seria roubá-la, e portanto comer queijo seria pecado gravíssimo.

Preso em sua realidade de telinhas e ângulos retos, o vegano toma todo e qualquer animal pelo Mickey, e se recusa a perceber a intrincada cadeia de interdependências que movimenta e mantém a vida no planeta

Em sua empáfia de menino mimado que quer comandar o jogo por ter levado a bola para o playground, o vegano está convencido da perfeição absoluta de sua delirante premissa maior, e olha com – na melhor das hipóteses – desprezo para os que “roubam” do Mickey. Sente-se assim superior a todos, e crê estar lhes prestando um favor ao ordenar peremptoriamente, como ocorreu recentemente, que os mercados ponham avisos de que as laranjas não são “veganas” (ou seja: não são puras, não são belas, não são santas) por terem traços de cera de abelha no produto aplicado para tornar brilhosas suas cascas.

Se o código alimentar dessa falsa religião já apresenta tamanho rigor que faz parecer laxo o mais rigoroso rabino ultraortodoxo, há ainda muito mais lixo a acompanhá-lo. “Lixo na entrada é lixo na saída”, dizem os especialistas em ciência da informação, e é verdade. Um raciocínio que tem em sua base um erro só pode aumentar-lhe a gravidade. Destarte, não é só a laranja que se descobre ritualmente impura aos orgulhosos e arrogantes juízos dos sectários. Não é só o inocente sapato ou cinto de couro, nem mesmo a pobre bola de golfe (que sói ter em seu interior uma gota de mel). Não, claro que não. A sensação de superioridade, que faz as vezes da humildade como método de santificação na doutrina vegana, só pode existir se houver quem pisotear, quem desprezar, quem tratar mal. É por essas e outras que cada vez mais gente bem-educada acaba perdendo a paciência com a santimônia vegana. Li outro dia de um bistrô que gentilmente oferecia uma opção vegetariana e outra vegana, além da normal, do prato do dia. Tanto os veganos perturbaram a paciência do dono, contudo, que ele acabou eliminando a opção que gentilmente lhes oferecia. Afinal, quem quer clientes que, não satisfeitos em encontrar suas fantasiosas pretensões pseudomorais atendidas na lista de ingredientes dos pratos, põe-se a reclamar por serem os ingredientes guardados na mesma geladeira que produtos “impuros”, como queijos e carnes muito bem embalados?

O hinduísmo, em muitas de suas inúmeras formas, demanda de seus seguidores que não comam a carne de nenhum animal. Alguns chegam a andar descalços, por medo de pisarem inadvertidamente nalguma pulga ou formiga e assim levar à morte o pobre animalzinho. Faz pleno sentido, quando se crê que um ente querido poderia reencarnar barata. Mas mesmo essas fortíssimas restrições alimentares são acompanhadas de tamanha gratidão àquilo tudo que nos é literalmente dado pelo leite da vaca que as vacas são adoradas como se deuses fossem. Afinal, precisamos de proteína animal, para não termos o destino da pobre criança assassinada a golpes de dieta por sua desalmada mãe; ou, ainda, da outra vegana que resolveu demonstrar que veganos eram saudáveis escalando o Himalaia. Onde, claro, morreu.

A premissa pseudomoral inicial, de cuja escuridão tira o veganismo todo o sistema de autocongratulação que anima sua doutrina, simplesmente não faz sentido. Só alguém criado no ambiente asséptico e artificial de um apartamento pode querer separar-se assim do restante da Criação. Quando morremos, nosso cadáver – palavra cuja pseudoetimologia seria carne dada aos vermes – requer a colaboração de outros bichos para que possa voltar ao infinito ciclo de reaproveitamento que engloba toda matéria. Mesmo enquanto vivemos, nossa saúde depende de uma infinidade de animaizinhos unicelulares que compõem nossa fauna intestinal. Seu número é tamanho que se diz haver mais células vivas não humanas que humanas em nosso corpo. Sem elas não duraríamos nada, e assim que partimos desta para uma melhor elas diligentemente se dedicam a reciclar-nos as carnes.

Mesmo as pobres alfaces que o vegano devora vivas, sem perceber seus gritos de dor, dependem diretamente de inúmeros membros do vastíssimo reino animal para viver. Indiretamente, claro, todo ser vivo depende de todo outro ser vivo. Nem o homem nem qualquer outro ser vivo existe num vácuo; toda vida é interdependente. As árvores inalam o gás carbônico que exalamos e exalam o oxigênio que nos mantém vivos. Os passarinhos e insetos polinizam as plantas que comemos, a tal ponto que em alguns lugares onde a imbecilidade humana levou à extinção alguns insetos é hoje necessário polinizar com cotonetes as flores, uma a uma. Não há barreiras entre os reinos na Criação; vivemos juntos, e nossas vidas são forçosamente imbricadas umas nas outras, formando um vastíssimo conjunto harmonioso.

O veganismo, quando o examinamos friamente em vez de apenas revirar os olhinhos a cada fantasia de superioridade de um adepto seu, é o outro lado da moeda do mesmo erro que leva à destruição maciça de habitats. Tanto o vegano quanto o devastador da ecologia escolhem não perceber que toda criatura é interdependente de toda outra criatura. A diferença é que um quer arrancar tudo o que pode da terra (ou da Terra, o planeta), e para isso devasta o ambiente com venenos e produtos químicos para ou bem arrancar minerais ou bem fazer crescer artificialmente rápido os vegetais que deleitam seu comparsa vegano; e o outro acha que a abelhinha que o primeiro mata é o Mickey.

Tanto o vegano quanto o devastador da ecologia escolhem não perceber que toda criatura é interdependente de toda outra criatura

Tanto faz, no fim das contas, se a pessoa se separa da abelha por não perceber seu valor ou se ela se recusa a perceber o valor da abelha (e do mel, da cera, do própolis, da geleia-real...) por se ter separado dela. Ambos a ignoram, ambos a desprezam e, no fim das contas, ambos a eliminam. Afinal, ao longo dos milênios, a simbiose entre nós e os outros bichos nos levou a tamanho grau de colaboração que um depende do outro. A vaca, cujo leite o guri de apartamento acha que roubamos, sem ter quem a ordenhe pode até morrer por excesso de leite empedrado nas tetas. A galinha, solta no mato, sumiria tão rapidamente goela abaixo de algum predador que não teria tempo sequer de emitir um último cacarejo. E por aí vai.

Tal como seu antepassado, o puritanismo, o veganismo existe pelo sentimento de superioridade que proporciona a seus adeptos em relação às massas ignaras. Os puritanos, lembro, eram tão chatos que a Inglaterra preferiu dar-lhes passagem só de ida para a América do Norte, onde se dedicaram a comprovar a própria santidade chacinando quem tivera o azar de ali viver, de ali ter nascido e crescido. E, tal como o puritanismo original, o veganismo é uma religião separatista, que separa seu adepto não apenas do próximo (“despreza teu próximo como amas a ti mesmo” poderia ser seu mote), mas de toda a ordem da Criação, de toda complexíssima teia de coerências, dependências e relações que mantém a vida.

No fundo, o que se tem é outra coisa que Chesterton explica melhor que Freud: quem não acredita em Deus acaba acreditando em qualquer bobagem. É a arrogância moderna, que nega valor a tudo que não seja fruto da mente humana, que acaba impedindo como uma camisinha impede o contato de óvulo e espermatozoide que a sede de infinito do homem encontre saciedade em seu Criador. Para o urbanoide arrogante Deus é ridículo, e ainda mais ridículo seria acreditar n’Ele. Daí o próximo passo, tão necessário quanto é necessário achar a fonte do Bem que por natureza buscamos: adorar o Mickey. Em vez da Encarnação do Verbo, tem-se a Mickeyização da vaca, da galinha e da abelha. Em vez do infinito Amor que nos eleva à medida que descobrimos nossa própria pequenez e mediocridade, tem-se a premissa absurda de que a separação entre o homem e os demais bichos seria a única Lei.

A coisa é tão triste que seria, em tempos mais sãos, patética. Em nossos tempos tresloucados, contudo, em que uma candidata a ministro de Suprema Corte gringa prefere não responder à pergunta “o que é uma mulher?” por medo de se enrascar com qualquer resposta que desse (funcionou; ela ganhou a vaga), o que deveria ser mero objeto de riso torna-se perigo real. Temos aí o cadáver do pobre menininho sacrificado pela mãe no altar da Clarabela endeusada que não nos deixa mentir. Moloque hoje, quem diria, ainda devora bebês, mas se recusa a usar cinto de couro. O tempora, o mores.

Fico, então com o Poetinha:

Não comerei da alface a verde pétala
Nem da cenoura as hóstias desbotadas
Deixarei as pastagens às manadas
E a quem mais aprouver fazer dieta.

Cajus hei de chupar, mangas-espadas
Talvez pouco elegantes para um poeta
Mas peras e maçãs, deixo-as ao esteta
Que acredita no cromo das saladas.

Não nasci ruminante como os bois
Nem como os coelhos, roedor; nasci
Omnívoro; deem-me feijão com arroz

E um bife, e um queijo forte, e parati
E eu morrerei, feliz, do coração
De ter vivido sem comer em vão.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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