| Foto: sik92/Pixabay
Ouça este conteúdo

A impressão que se tem ao ler as notícias é de que há uma epidemia de tarados por todo lado. De um anestesista tarado a estupradores de criancinhas, a coisa está bem feia. Seria possível atribuir a quantidade de notícias a um foco maior na questão dos abusos sexuais, coisa que de um certo modo é bom para fazer com que as vítimas potenciais tomem mais cuidado. Afinal, como nos alertou Soljenitsín, a linha que divide o bem e o mal passa por dentro de cada coração. Tarados não têm chifres ou pele escamosa, e podem ser encontrados por toda parte; melhor ficar esperto.

CARREGANDO :)

Mas há algo além do aumento do número de casos; as taras exibidas pelos criminosos sexuais têm se revelado cada vez mais retorcidas, mais perversas, mais distantes do mecanismo básico da conjunção sexual. O básico do básico do sexo é simples: a penetração genital e a ejaculação. É assim que se faz um bebê, e mal que bem é para fazer bebês que a gente tem esse mecanismo complicado todo. O tarado, no entanto, sai do básico. Só para começar, a função unitiva do ato – ou seja, o chamego, o amor, a troca de beijos – para ele é menos que irrelevante, podendo chegar a ser um empecilho. É por isso que um estuprador agarra uma mulher e a penetra à força; para alguém que não é tarado, a ideia de ter uma relação sexual na qual, em vez de se ser beijado e amado de volta, só se tem uma vítima desesperada para fugir dali parece um pesadelo. Já o estuprador gosta de não ser amado de volta. De não ser acarinhado. De meter medo.

Mesmo assim, o nível de tara ainda é relativamente baixo quando tal horror é cometido contra uma mulher em idade reprodutiva: o objeto da atração é correto, mas a relação entre sujeito e objeto é que é perversa. Já no caso de um sujeito que estupra criancinhas, até mesmo o objeto da atração é perverso. O mesmo ocorre no caso do anestesista tarado; poucas coisas seriam tão pouco semelhantes a um ato de amor que o estupro oral de uma mulher desacordada e em trabalho de parto(!). A boca da pobre vítima não deveria despertar desejos libidinosos em ninguém, como tampouco deveriam corpos pré-púberes ou animais.

Publicidade

As taras exibidas pelos criminosos sexuais têm se revelado cada vez mais retorcidas, mais perversas, mais distantes do mecanismo básico da conjunção sexual

Em outras palavras, mesmo se for uma maior consciência de tal mal que faça com que apenas pareça haver uma quantidade crescente de ataques sexuais, é inegável que os ataques têm se revelado cada vez mais perversos. Veja-se o caso do anestesista tarado, por exemplo: era um sujeito saudável, sem nenhuma deformação estética, marombado, ganhando bem... Não deveriam lhe faltar mulheres dispostas a ter um caso ou mesmo casar-se com ele. O interesse dele, todavia, era outro. Uma linda mulher apaixonada por ele, enchendo-o de beijos durante um ato de amor, não lhe parecia tão atraente quanto a boca de uma senhora desacordada e em trabalho de parto, numa sala de cirurgia, com um monte de gente vendo sem entender o que via. Como disse a sábia mãe de uma amiga acerca de uma revista feminina, é “um sexo complicado”.

De onde vem tal complicação? De onde surgem tais taras? O que é que deposita no cipoal que é a mente humana as sementes da perversão, e o que as rega e as torna enraizadas o suficiente para passar do delírio pervertido ao ato?

Creio que a explicação está diante de nossos olhos. Trata-se de uma mentalidade pornográfica, da mentalidade que é transmitida pela pornografia. Eu ficaria extremamente surpreso se o anestesista tarado não fosse viciado em pornografia, provavelmente assistindo todo dia a barbaridades sexuais filmadas e postas na rede ao alcance de todos. Do mesmo modo, é tão comum que estupradores de criancinhas fotografem e filmem as barbaridades que cometem – numa espécie de produção caseira do tipo de conteúdo pornográfico que apreciam – que a primeira coisa que um investigador faz é procurar no celular do suspeito provas contra ele. Que em geral encontra.

Que outro tipo de criminoso carrega consigo as provas do crime? Muitos assassinos em série guardam “recordações” de suas vítimas: um anel, um osso, o que for, que os ajudem a relembrar e reviver a excitação do momento do crime. Há certamente também este elemento em ação. Mesmo assim, os souvenires das vítimas dos assassinos seriais ficam em geral escondidos. Já os tarados carregam consigo, no próprio celular, as fotos e vídeos que podem levá-lo à cadeia. Por quê? Minha impressão é de que para eles a “normalidade” da pornografia sobrepassa a percepção de que se está carregando provas do próprio crime. Ter (ou navegar por) fotos e vídeos pornográficos no celular tornou-se normal; tão normal que a própria “produção doméstica” acaba sendo também normalizada, mesmo quando vai contra a lei e o bom senso mais elementar.

Publicidade

O problema básico da pornografia é que ela é fundamentalmente desordenada; é impossível haver “boa” pornografia. O ato sexual ordenado é um ato de união, de amor, dentro de um contexto de entrega mútua e completa intimidade. Já na pornografia é impossível haver tal entrega, e por definição – por ser ela fotografada ou filmada, e assistida em outro momento e lugar – nada há de íntimo. Quem se acostuma à pornografia acostuma-se a reduzir o ato sexual à sua mecânica. Sem amor. Sem intimidade. Sem que sequer se cogite de uma gravidez a não ser como um inconveniente, comparável ao de uma doença sexualmente transmissível.

Dizem que há sistemas religiosos em que o sexo só seria permitido para a procriação. Acho improvável, na medida em que na prática é impossível garantir que da relação venha uma criança, e quando a relação é ordenada ela em geral é prazerosa para ambos. Por outro lado, as tradições religiosas mais provadas pelo tempo costumam proibir que se impeça propositadamente a concepção; afinal, sendo o aparelho reprodutor feito para a reprodução, negá-la ativamente acaba sendo semelhante ao hábito dos romanos decadentes de comer lautamente e logo em seguida vomitar tudo para comer mais. Uma coisa desordenada. Em ambos os casos se nega o fim natural de algum ato de geração ou manutenção da vida, visando exclusivamente o prazer sensível que deveria servir apenas de “isca” para o ato.

O problema básico da pornografia é que ela é fundamentalmente desordenada; é impossível haver “boa” pornografia

Se não se quer ter filhos que não se tenha sexo, exatamente como quem quer emagrecer não pode se entupir de macarrão e pudim. A rainha anglo-saxã Etelfreda teria famosamente dito, para explicar a razão pela qual ela e o rei Etelredo, seu marido, pararam de ter relações após o difícil parto da princesa Elfuína (sou só eu que acho um barato esses nomes?), que “não fica bem para a filha de um rei entregar-se a um deleite que após algum tempo traz consequências tão doloridas”. Ou seja: no contexto adequado o sexo é um deleite, ainda que não se possa dizer o mesmo de um parto difícil, ainda por cima antes de inventarem a anestesia. Tal ato, contudo, sempre pode gerar uma nova vida, e realmente deve doer pacas parir uma pessoinha cabeçuda.

Há um ditado em economia segundo o qual “dinheiro ruim afasta dinheiro bom”: ninguém gasta ouro se puder pagar a compra com vale-transporte. O mesmo acontece em relação à pornografia e à sexualidade ordenada, que ela acaba substituindo. Pavlov, Skinner e o resto daquele pessoal já provaram que o ser humano é adestrável, e a pornografia é uma forma de adestramento. O espectador de pornografia é recompensado com o orgasmo e, ainda que o seco e triste orgasmo solitário deixe tudo a desejar em relação ao orgasmo amoroso de uma relação ordenada, a recompensa orgásmica repetida marca e faz com que se volte. E se volte. E se volte.

Publicidade

É muitíssimo mais fácil recorrer à pornografia a cada vez que a vontade aparece (e como aparece!) que realizar um ato sexual ordenado, para o qual se precisa de duas pessoas e de um compromisso. Assim o orgasmo ruim, farto e barato da pornografia, como dinheiro ruim, acaba afastando o dinheiro bom do orgasmo conjugal bom, comparativamente raro e caro (em tempo, trabalho, atenção ao cônjuge...). A sexualidade do viciado passa a ser modelada pela pornografia. Mesmo tendo um cônjuge que o ama, o viciado passa a desprezá-lo em benefício do vício solitário. Ou, até, tem relações com o cônjuge a modo pornográfico, mecanicamente, acrobaticamente, sem amor, sem intimidade e sem carinho. O cônjuge, num tal caso, torna-se substituto da mão direita do viciado em pornografia. Não é mais uma pessoa, que dirá uma pessoa amada; é literalmente um objeto sexual.

Mais ainda: todo viciado em pornografia, independentemente de estado civil, é psicológica e sexualmente solitário. O sujeito pode ter dez relações sexuais por semana, pode ser considerado o terror da mulherada, o papão das mocreias, mas é solitário. Afinal, a substituição do objeto de atração pelo modo de conjunção o tornou incapaz de experiência sexual ordenada. Os parceiros sexuais são apenas sucedâneos intercambiáveis da própria mão, e em algum momento aquilo vai deixar de bastar. Afinal, tendo sido feita a transformação demoníaca de um ato ao menos potencialmente gerador e unitivo numa repetição frenética de orgasmos secos produzidos pela atenção a imagens degradantes, é fundamental que a coisa vá ficando cada vez menos normal para que se possa voltar a ter o entusiasmo inicial. Quem começa vendo um rapagão e uma moça bonita tendo relações acaba precisando de vídeos com “bodes, carrinhos de mão e anões besuntados” (©Luís Fernando Verissimo).

Uma amiga comentava comigo outro dia a escalada monumental da pornografia. Em meados do século passado, circulavam os “catecismos” do Carlos Zéfiro: histórias em quadrinhos de sexo explícito, horrivelmente mal desenhadas, mas com grande sucesso entre os moleques adolescentes. Dali passou-se às fotografias pornográficas, divididas entre as legalmente permitidas (as famosas “revistas de mulher pelada”, como a Playboy, que mal e mal mostravam pelos púbicos) e as proibidas, em que havia sexo explícito e poses ginecológicas. Sem movimento. Em fotografias.

Onde entra a pornografia sai o amor, porque a pornografia deforma justamente o imaginário do que deveria ser o auge do amor humano. Torna-o estéril. Falso. Feio

Já hoje está ao alcance de qualquer celular, nas mãos de qualquer um, todo tipo de pornografia extremamente explícita. Para piorar, seu formato mais comum é o vídeo, cujas características e perigos apontei aqui mesmo semana retrasada. Crianças assistem a pornografia regularmente, modelando desde antes de começarem a ter relações o modo como as terão. Um modo pornográfico, desordenado, em que não há amor algum. Ouvi de uma mocinha outro dia que o namoradinho de uma sua amiga lhe “f* a cara”, segurando-a pelas orelhas e usando sua garganta como receptáculo. Trata-se de uma mocinha perto da idade legal de consentimento – que no Brasil é de 14 anos – e um rapazinho da mesma idade ou pouca coisa menos novo. Qual é a chance de essas pessoinhas chegarem a ter uma sexualidade sadia? A meu ver, ela é inversamente proporcional à exposição à pornografia. No caso do rapazinho, o mal já está feito. No caso da mocinha, o trauma está garantido.

Publicidade

É devido à sexualidade pornográfica que se têm cantoras que tatuam “eu te amo” no ânus, que se tem crianças fazendo crianças, que se tem maníacos abusando de crianças ou de pacientes desacordadas. É a sexualidade pornográfica que leva as farmácias a vender toneladas de pilulazinhas azuis, que servem para ajudar a ultrapassar a diferença entre a mulher-robô aparentemente de matéria plástica de um vídeo ou fotografia retocada e uma mulher de verdade, com suas celulitezinhas e pneuzinhos.

Seria excelente que acabasse a aceitação sexual da pornografia. Que o vício em pornografia passasse a ser algo de que as pessoas se envergonham e que procuram abandonar. Que fosse feito em relação à pornografia o que foi feito em relação ao cigarro, com enorme sucesso

É, finalmente, a sexualidade pornográfica que nega, impede e envenena o amor entre os casais, base de qualquer sociedade. Onde entra a pornografia sai o amor, porque a pornografia deforma justamente o imaginário do que deveria ser o auge do amor humano. Torna-o estéril. Falso. Feio.

E com isso, como sempre, quem mais sofre é a mulher. A proporção de viciados em pornografia é evidentemente muito maior no sexo masculino, que já vem preparado para o desvio por dar um peso muito maior aos sentidos na atração sexual. Daí a menina ter “a cara f*” pelo namoradinho. Daí tantas esposas esperarem na cama fria o marido que as troca por imagens, filminhos, meros píxeis em movimento. Daí tantos estupros, abusos, ataques. Daí, mais ainda, a bizarria de tais ataques.

Dada a tecnologia empregada, na prática é impossível fazer com que não haja mais pornografia. A caixa de Pandora já foi aberta. Seria, contudo, excelente – e nisso mais uma vez me vejo ao lado das feministas – que acabasse a aceitação sexual da pornografia. Que o vício em pornografia passasse a ser algo de que as pessoas se envergonham e que procuram abandonar. Que fosse feito em relação à pornografia o que foi feito em relação ao cigarro, com enorme sucesso. Só assim deixaríamos de ter tantos casos, e casos tão bizarros, de abuso sexual. Até lá, contudo, só o que se pode fazer é procurar mostrar o perigo real e imediato que a pornografia representa, como tentei fazer nestas mal-traçadas, para que os viciados busquem tratamento e quem não se viciou evite que isso aconteça.

Publicidade

Mais vale ser capaz de amar.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]