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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Visões imperiais

O patriarca ortodoxo de Moscou, Kirill, e o presidente da Rússia, Vladimir Putin, em foto de novembro de 2018. (Foto: EFE/EPA/Alexander Nemenov/Pool)

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Uma característica comum a todos os impérios é a ilusão de superioridade. Toda potência imperialista acredita e prega a seus cidadãos ter o direito natural ou divino de subjugar os outros povos. Na guerra atual, o que está efetivamente ocorrendo é uma briga de impérios – americano e russo, aquele por procuração –, cada um com sua visão de mundo. Sem conhecer as origens e a visão de mundo de cada um dos atores principais, é impossível realmente entender o conflito.

A própria visão imperialista, por basear-se em pressupostos próprios a cada império, acaba sendo o maior empecilho à compreensão da realidade, tanto para seus cidadãos quanto para os povos sujeitos a ele. O resultado é o que se vê na mídia ocidental – fortemente pautada pelos EUA – e na russa. Para o lado americano, o império russo está simplesmente buscando aumento territorial ao invadir a Ucrânia, tentando recriar a felizmente falecida União Soviética. Já para o lado russo, trata-se de uma ressurgência do inimigo que mais feriu a Rússia em sua história, o nazismo alemão, e a invasão da Ucrânia é uma operação de resgate da Ucrânia, uma tentativa de destruir o ovo do dragão. O ódio de lado a lado é tamanho que ao ler os escritos de um e de outro, por dever de ofício, é frequente que me pegue rezando, chocado com o ódio que pinga de cada palavra.

Para compreender tamanha disparidade, é preciso voltar mais de mil anos, até as origens de uma diferença que na verdade é fundamentalmente religiosa. Não poderia ser outra forma, na medida em que até pouquíssimo tempo (em termos históricos) seria impensável não ter uma religião como centro de toda organização social. Aliás, o moderníssimo laicismo estatal ocidental, bem como a relação quase carnal entre a Igreja Ortodoxa Russa e o Kremlin, são partes cruciais do conflito que procuro aqui apresentar.

Na guerra atual, o que está efetivamente ocorrendo é uma briga de impérios – americano e russo, aquele por procuração –, cada um com sua visão de mundo

A maior potência militar às margens do Mediterrâneo na primeira metade do primeiro milênio depois de Cristo era Roma. O Império Romano dominava todas as margens do Mediterrâneo e todo o sul da Europa; desde o século 3.º, por razões de expediência administrativa, o gigantesco território foi gerido separadamente, com uma metade ocidental gerenciada a partir de Roma e uma oriental, que viria a ser gerida a partir de Constantinopla (também chamada Bizâncio, situada onde hoje está Istambul), sujeita a Roma, mas administrada independentemente. Após a conversão do imperador Constantino, no século 4.º, a religião católica – que por tanto tempo fora perseguida ao martírio – passou a ser dominante.

Quase 100 anos depois, todavia, houve um acontecimento que veio, indiretamente, a gerar as culturas imperialistas de que tratamos: a Queda de Roma. A metade ocidental (e central) do império foi dominada por invasores bárbaros do norte, gerando uma situação de confusão política geral que acabou por conduzir à Idade Média europeia. Tivemos, assim, na metade ocidental do finado Império Romano o desenvolvimento independente da autoridade civil (e militar) e da autoridade religiosa papal. Dando a César o que é de César, a Igreja aceitou a posição de supervisão moral de uma infinidade de governos regionais e microrregionais que surgiam organicamente após o fim da centralização romana.

Já no lado oriental, o que ocorreu foi basicamente o oposto: a relação daquela metade da Igreja com o imperador bizantino – mormente após o surgimento do perigo islâmico, no século 7.º – era de quase-subordinação. A autoridade do imperador até mesmo em assuntos religiosos era aceita sem questionamentos. Sem gozar da liberdade da Igreja ocidental, o pensamento teológico atrofiou-se e endureceu-se, dificultando o aprofundamento doutrinal e privilegiando a mística, contida apenas pela manutenção da prática tradicional.

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Pulando alguns séculos, chegamos – no início do século 9.º – ao Grande Cisma do Oriente, quando a introdução papal de uma única palavra na tradução latina da profissão de fé cristã, tornada necessária para responder a erros teológicos que vinham ressurgindo, provocou o levante de patriarcas orientais contra a autoridade papal suprema. Cumpre observar que nem foi geral o levante, nem deixou de haver grande parcela do clero oriental voluntariamente sujeita à autoridade papal. No fim das contas, o que acabou surgindo foi uma estranha duplicidade de patriarcados, com patriarcas cismáticos disputando as mesmas sés com patriarcas sujeitos à autoridade papal.

Nesta época, surgiu no meio cismático oriental a noção de que Roma – por causa da palavra introduzida numa tradução – teria apostatado, abandonado por completo a fé católica. Sendo todavia dogmática a noção de que a Igreja Católica é governada a partir de Roma, como fazer? A “solução” encontrada foi declarar que Bizâncio, por ter sido capital administrativa de uma metade do Império Romano, teria então passado a ser “a Segunda Roma”.

Data desta época a cristianização dos povos que viriam a dar na futura Rússia; tratava-se então de uma quantidade relativamente pequena de tribos, centrada na atual Kiev ucraniana e ocupando território conquistado do único reino judeu fora da Terra Santa. Este processo de cristianização (cismática, e vendo no cisma razão de orgulho identitário) do sul para o norte a partir de Bizâncio era mais ou menos acompanhado por uma investida evangelizadora católica no norte da Europa, orientada a partir da Roma papal e ocorrendo de oeste a leste ao longo das margens do Báltico.

Esticando loucamente o cesaropapismo já característico dos orientais, Ivan, grão-duque de Moscou, declarou-se continuador do Império Bizantino e adotou o título romano de “César” (“czar”, em russo)

Movidos pela necessidade de sermos breves, deixamos de lado enorme cópia de histórias interessantes – posto que a História é o conjunto das historietas que melhor nos fazem entender o homem – e saltamos mais uns tantos séculos, aterrando no período de maior movimentação cultural e política da história do Ocidente: a virada do século 15 para o século 16. Pincemos, pois, os acontecimentos mais importantes desse período, a contragosto atendo-nos aos mais cruciais para que se tenha alguma compreensão do que veio a ocorrer:

O Grande Cisma do Oriente foi o tema de um lindo encontro de irmãos separados, o Concílio de Ferrara, iniciado em 1438 e presidido pelo papa Eugênio IV. Representando a totalidade dos aderentes do cisma oriental estavam o imperador bizantino (dada a autoridade religiosa que lhe era conferida pelos cismáticos, dita cesaropapismo), o patriarca de Constantinopla (considerado “primeiro entre iguais” pelos orientais) e representantes das sés patriarcais cismáticas de Antioquia, Alexandria e Jerusalém. O Concílio (concluído em Florença em 1442) foi um sucesso, tendo os orientais aceito tanto a tradução latina do Credo quanto a submissão a Roma. Ao voltarem a suas sés para anunciar a boa notícia, contudo, os prelados orientais foram atacados por leigos e membros do baixo clero que queriam continuar em cisma. Alguns foram martirizados, outros presos, outros exilados. No que certamente pode ser interpretado como punição divina dos cismáticos renitentes, a grande cidade de Constantinopla foi invadida pelos turcos muçulmanos em meados de 1443, e até hoje continua em suas mãos. Constantinopla, que fora capital da Igreja oriental, tornou-se Istambul, até hoje centro vital da Turquia muçulmana. A belíssima Basílica de Santa Sofia tornou-se, e continua a ser, uma mesquita.

O Grão-Ducado de Moscou (vassalo da Grande Horda mongol), que havia sido um dos mais persistentes inimigos da reunião da Igreja, era então um poder local de origem muito recente. A cidade de Moscou, estabelecida como entreposto comercial no seio de uma floresta parcos 200 anos antes, pode ser comparada à época à nossa Manaus atual, tanto em termos de distância dos grandes centros como de importância comercial e geopolítica. Mesmo assim, com a queda de Constantinopla e o fim decorrente do Império Bizantino, o grão-duque Ivan decidiu jogar mais alto para garantir a centralidade de seu patriarcado (transferido de Kiev pouco mais de um século antes). Uma princesa bizantina, dona Sofia, já nascida no exílio, sobrinha do derradeiro imperador bizantino, havia sido criada na corte papal romana. O papa Paulo II, na esperança de conseguir implantar entre os cismáticos eslavos as decisões do Concílio, arranjou-lhe o casamento com Ivan em 1472.

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Este, contudo, traiçoeiramente usou seu casamento como base para uma louca pretensão. Ele era, afinal, ao mesmo tempo descendente da família imperial bizantina (graças ao casamento de seu antepassado Vladimir, rei de Kiev, com a irmã de um imperador bizantino 500 anos antes) e marido de uma princesa da mesma estirpe. Esticando loucamente o cesaropapismo já característico dos orientais, Ivan declarou-se continuador do Império Bizantino e adotou o título romano de “César” (“czar”, em russo). Mais ainda: tendo, na visão dos cismáticos, caído em suposta heresia a Roma papal, com sua autoridade então transferida para a suposta Segunda Roma bizantina, a queda desta cidade nas mãos dos muçulmanos, mesmo sem que houvesse qualquer acusação contra o patriarca cismático de Constantinopla, automaticamente transferiria a autoridade religiosa para Moscou. E eis que nasce a fantasia da Terceira Roma, na origem das pretensões imperialistas russas sobre todos os povos cristãos de rito oriental.

Passemos agora para as vastidões a oeste de Moscou, onde encontraremos as origens culturais do outro império a que nos dedicamos neste artigo. Vale observar que, por jamais ter feito parte do Império Romano, o norte europeu deixou de receber as influências que formaram nossa civilização: Jerusalém, Atenas e Roma, unidas no Império Romano católico. Sua evangelização tardia ocorreu sem o benefício civilizatório da herança romana, e foi justamente ali que surgiu a pústula cancerosa que veio a atacar nos últimos séculos a Cristandade: a dita Modernidade.

Seu início é traçado à revolta de um monge alemão, Martinho Lutero, que de início inadvertidamente, e mais tarde em busca de poder temporal, abriu a Caixa de Pandora do protestantismo. Da profusão inicial de seitas “baseadas” na negação por Lutero do grosso da Revelação, substituída pelas infinitas compreensões pessoais de traduções da Sagrada Escritura, sobreviveram no curto e médio prazo apenas três. A maior delas, em termos de território dominado, foi o próprio luteranismo, que rapidamente dominou o norte europeu. A segunda, maior em estrago moral e capacidade de destruição, foi o calvinismo. Originado em Genebra, ele está na origem doutrinária da forma atual do império anglo-saxão, como veremos. A terceira, na origem cultural do mesmo império, não é uma doutrina, mas uma comunidade eclesial: a Comunhão Anglicana. De início tratava-se “apenas” de um cisma; como o rei da Inglaterra desejava divorciar-se e sabia que a Igreja não concordaria, aproveitou a confusão reinante para autodeclarar-se senhor supremo da Igreja em seus domínios. Nem os russos ousariam tamanho cesaropapismo, mas a farta distribuição dos bens dos mosteiros e conventos ingleses à nobreza comprou seu apoio (ao mesmo tempo que desproveu os pobres, que podiam plantar nas terras das comunidades religiosas e eram por elas ajudados e mesmo sustentados).

Vendo no Novo Mundo a Terra Prometida e neles mesmos a Nova Israel, os puritanos povoaram ao longo do século 17 a atual Nova Inglaterra, no atual extremo nordeste dos EUA

Não tendo exatamente uma doutrina pela qual zelar, mas fazendo questão absoluta do monopólio da religião na Inglaterra, a nova “Igreja Anglicana” logo tornou-se um campo de batalha religioso, em que se digladiavam (por vezes fisicamente) diversas seitas protestantes, ao lado de um núcleo menos afastado do catolicismo original. A mais perigosa dessas seitas era a dita puritana, de orientação calvinista. Seu diferencial maior em relação à doutrina das demais seitas lutando pelo controle da máquina religiosa estatal era a crença na dupla predestinação: para eles, antes mesmo do nascimento o destino final de cada um – céu ou inferno – já estaria determinado. Assim, pregavam um deus que odiaria os réprobos mesmo antes de nascerem (e estes seriam a maioria das pessoas, claro). A melhor maneira de se saber predestinado à salvação eterna seria a constatação de ser divinamente favorecido com riqueza, saúde e tudo o mais que torna agradável a vida neste mundo. Como, ainda, o comportamento considerado “indecoroso” seria marca de predestinação à perdição, a sociedade, pregavam os puritanos, deveria ser extremamente rígida e inflexível em relação a ele. Uma pequena ilustração ajuda a entender sua mentalidade: até poucas décadas atrás, algumas cidades de maioria puritana acorrentavam os brinquedos das praças aos domingos para evitar que as crianças, ao brincar neles, “desrespeitassem” o dia santo.

A Inglaterra, lembramos, havia sido parte do Império Romano por muito pouco tempo, em sua decadência quase final. Naquele tempo sua população era celta, aparentada à francesa e à espanhola. Após a retirada das tropas romanas, ela sofreu invasão maciça de nórdicos da Ânglia e da Saxônia, fazendo sua cultura decair a níveis extremamente primitivos. Mais ou menos enquanto no leste distante surgiam os russos, na virada do milênio, a Inglaterra foi invadida pelos normandos (da atual França), que passaram a reinar sobre as massas anglo-saxãs e (no extremo leste) celtas. Desta mistura de civilização e barbárie surgiu a cultura anglo-saxã. Uma cultura guerreira, por herança dos nórdicos, com um fino verniz de cristianismo, ela veio a tornar-se real contendora das culturas católicas herdeiras do Império Romano aproximadamente no fim do período de intensa mudança que apontamos acima, no início do século 17.

Colombo havia acabado de descobrir o Novo Mundo. Exatamente no mesmo ano, a Península Ibérica concluíra sua guerra de 800 anos contra os invasores islâmicos. Ao saber das novas terras descobertas, e mais ainda dos horrores perpetrados pelos pagãos que as dominavam – sacrifícios humanos em escala industrial, entre outras barbaridades –, os iberos simplesmente fizeram da conquista das Américas continuação da Reconquista. À Espanha, a quem couberam pelo Tratado de Tordesilhas as partes do Novo Mundo em que havia vasta população e civilizações avançadas com administrações centralizadas, dedicou-se à sua evangelização. Todo o território andino, bem como a América Central e o oeste tropical da América do Norte (do México ao atual oeste americano, do Texas à Califórnia) foi evangelizado a duras penas pela Espanha, com o sangue derramado de muitos mártires.

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Mas a etapa lógica seguinte da Reconquista, que seria retomar dos mouros as terras romanas do Norte da África, dependia de fazer cessar o fluxo de dinheiro do Oriente Médio para aquela região, e assim dificultar aos islâmicos a manutenção de uma cara guerra. Com este fim, Portugal lançou-se simultaneamente à América hoje brasileira e à Índia, donde queria cortar o fluxo comercial muçulmano que levava ao Oriente Médio as especiarias indianas – que hoje poderíamos comparar, em utilidade, às geladeiras e freezers: elas serviam fundamentalmente para a conservação de vitualhas. A Casa da Índia portuguesa conseguiu efetivamente interromper o fluxo de riquezas que garantia os territórios muçulmanos no primeiro terço do século 16 (ou seja, enquanto a Europa do norte estava em polvorosa com a revolta protestante), mas a falta de pessoal e a invasão muçulmana da Índia a lançaram à beira da bancarrota. No alvorecer do século 17, para piorar ainda mais a situação, iniciou-se a presença inglesa na Índia, com o objetivo declarado de rivalizar com os portugueses. Ao contrário destes, que tinham um interesse geopolítico e mesmo civilizacional a orientar sua ação comercial, contudo, para os ingleses, tanto fazia se enriqueciam ou empobreciam o Islã, desde que conseguissem encher as próprias burras de dinheiro.

Ao mesmo tempo, começou a colonização anglo-saxã da América do Norte. A primeira leva de colonos consistia de puritanos radicais, expulsos da Inglaterra num período em que a organização religiosa estatal estava nas mãos de inimigos doutrinais seus. Vendo no Novo Mundo a Terra Prometida e neles mesmos a Nova Israel (havendo até mesmo surgido teorias pseudocientíficas para “provar” serem os ingleses membros das tribos perdidas do Povo Eleito), os puritanos povoaram ao longo do século 17 a atual Nova Inglaterra, no atual extremo nordeste dos EUA. O atual sudeste americano (com a exceção da Flórida espanhola), por sua vez, foi colonizado por ingleses de doutrina mais assemelhada à católica, num período em que a gangorra das guerras fratricidas e disputas políticas pusera no poder os puritanos. A parte entre uma e outra área, onde já havia alguma presença holandesa, acabou sendo colonizada por membros de outras seitas, pequenas demais para alcançar a dominação da denominação estatal, mas grandes o bastante para incomodar os poderes estabelecidos. No total, a área colonizada dividia-se em 13 colônias independentes, em sua maior parte estabelecidas por gente com a mesma visão religiosa. O nordeste “ianque” mantinha uma espécie de teocracia (onde foram vitimadas as “bruxas” de Salém, por exemplo), o sudeste tentava recriar uma sociedade semifeudal, com escravos de início irlandeses e mais tarde africanos fazendo as vezes de servos da gleba, e a área intermediária era uma espécie de feira livre religiosa, com uma religião diferente a cada tantas dezenas de quilômetros.

Ao fim do século 18 o rei da Inglaterra proibiu a expansão a oeste das colônias, preocupado com as constantes violações dos tratados de paz que firmara com os nativos que eram perpetradas pelos colonos. Uma insatisfação geral dos colonos com o governo inglês explodiu, então, em revolução. Nasceram dela os Estados Unidos da América, que ao longo do século seguinte cresceram em território pela rapina e genocídio até a costa do Oceano Pacífico. Imediatamente após a independência americana, a Inglaterra voltou-se para o outro lado do mundo, estabelecendo outra frente igualmente genocida de colonização na Austrália e Nova Zelândia. Simultaneamente, mundo afora, a mesma Inglaterra foi erigindo um sistema de colonização comercial-militar, em que companhias particulares, com exércitos particulares, dominavam vastíssimos territórios e os exploravam em benefício do Homem Branco.

A Inglaterra, seguida de perto pelos EUA, foi um dos maiores celeiros da horrenda eugenia que tantos horrores pregou na virada do século 19 para o 20

Este Homem Branco, a quem Kipling atribuiu o “fardo” de “civilizar” pela mais crassa exploração os povos mais morenos mundo afora, era na verdade o mesmo europeu nórdico, que morava em choças enquanto ao redor do Mediterrâneo construíam-se palácios do mais fino mármore. Nos EUA, os europeus do sul levaram muito tempo até conquistar tal status. Até mesmo os irlandeses, de início – por serem celtas, não anglo-saxões –, não eram considerados “brancos”. Uma verdadeira “vespa” (apelido da classe dominante americana: “WASP”: “White, Anglo-Saxon, Protestant”) deve ser “branca” (nórdica), anglo-saxã e protestante. Menos que isso, não é da mais pura cepa. A Inglaterra, seguida de perto pelos EUA, foi um dos maiores celeiros da horrenda eugenia que tantos horrores pregou na virada do século 19 para o 20. O racismo americano, cujos efeitos até hoje se fazem sentir na forma de culturas isoladas, quase estanques, consideradas em termos “raciais” e não culturais, sempre foi extremo. Tanto que, quando a Alemanha nazista mandou que seus jurisconsultos pesquisassem a legislação racista americana para possível adoção na Alemanha (substituindo pretos e pardos por judeus, é claro), ela foi considerada exagerada demais e deixada de lado. Do mesmo modo, nas colônias da Oceania os aborígenes foram muitas vezes caçados como feras, e é coisa muito recente que tenham sido considerados seres humanos plenos, em pé de igualdade com os “brancos”.

A Segunda Guerra Mundial – em que os mais horrendos crimes de guerra da história, como os bombardeios maciços de civis, destruindo totalmente várias cidades, assim como os dois únicos usos de armamento nuclear contra civis inocentes, foram cometidos pelos poderes anglo-saxões – fez o centro de poder anglo-saxão derivar da mãe Inglaterra para os Estados Unidos. As antigas colônias, na verdade, jamais se haviam distanciado muito da antiga metrópole. Ao longo do século 20, ainda, diversos mecanismos de estudo e preparação de futuras autoridades (como as Bolsas Rhodes) garantiram que andassem no mesmo passo. Hoje, na prática, os ditos Cinco Olhos – EUA, Grã-Bretanha, Nova Zelândia, Austrália e Canadá – são de certa maneira uma versão pós-moderna do Império Romano do Ocidente e do Oriente, com autoridades locais autônomas unidas numa mesma visão global de poder.

Aos próprios olhos eles têm desde a origem uma dupla superioridade sobre todos os demais: a primeira – partilhada com alemães e escandinavos – é serem o famoso Homem Branco. A segunda, própria deles, é serem anglo-saxões, partilhando da mesma língua e cultura de origem. No caso específico americano, há ainda o efeito cultural da completa imanentização do modo de pensar puritano. Sendo o destino eterno colocado de escanteio, com a religião passando a ser assunto de foro privado, continuou todavia a ideia de dupla predestinação. A teocracia de origem foi transformada num culto à prosperidade material. Continua a haver “vencedores” ricos e “perdedores” pobres, bem como um “destino manifesto” pelo qual deveriam levar a todo o planeta, por bem ou por mal, seu modo de vida supostamente superior. O império anglo-saxão percebe como dever exportar a “Democracia” americana, com “D” maiusculíssimo; o livre mercado; a redução à irrelevância pessoal da religião; a negação de todo laço não contratual entre os indivíduos; e, hoje, o “direito” ao aborto, a celebração das formas mais estranhas de sexualidade, e por aí vai. Em breve, imagino, também entrará no pacote a legalização da maconha.

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O império russo, no começo do século 20, havia sido manietado pela loucura marxista, que de tudo fez para eliminar a importância e influência da Igreja russa. Curiosamente, ela se viu numa situação de domínio e arbítrio externo muito superior à sofrida pelo Patriarcado de Constantinopla sob domínio turco. Ainda mais curiosamente, no entanto, parece não ter surgido nenhuma “Quarta Roma”. O Palmar de Troya, talvez?

Quando caiu a União Soviética, após um período de desordem e evisceração da sociedade pela exploração americana imediata, subiu ao poder um novo autocrata, sucessor em tudo (menos nos títulos) dos czares anteriores: Vladimir Putin. Sua missão, a seus olhos, é fazer a Rússia voltar a ser um país respeitado e poderoso: a Terceira Roma. E ele vem tendo sucesso em tal empreendimento. Pouco a pouco, conseguiu alcançar e mesmo ultrapassar a tecnologia militar americana. Ao mesmo tempo, firmou laços comerciais importantes por toda a Eurásia, e – fundamental no que diz respeito ao conflito atual – procurou reavivar e reunir a seu “trono” a Igreja russa.

O secretário do Conselho de Segurança russo, Nikolai Patrushev, declarou em entrevista recente que a “Rússia escolheu o caminho da proteção total da sua soberania e da firme defesa dos interesses nacionais, da sua identidade cultural e espiritual, dos seus valores tradicionais e da sua memória histórica”. A guerra na Ucrânia, aos olhos russos, é exatamente isto. Afinal, foi em Kiev que começou a Rússia; o Patriarcado de Moscou – suposta Quarta Roma – começou como Patriarcado de Kiev, quando Moscou ainda não existia; a guerra à Alemanha – primeiro como poder católico, depois como poder protestante e mais tarde como poder nazista; não que para os russos haja alguma diferença entre os três – é componente importantíssimo da memória russa, e por aí vai. Para a Rússia, então, o império anglo-saxão – mais ainda por este dizer-se “O Ocidente” – é uma encarnação atual do mesmo papado em oposição ao qual preferiu primeiro prestar vassalagem aos pagãos mongóis, e contra o qual construiu sua própria identidade religiosa e civilizacional.

São dois impérios, um em ressurgimento e outro em decadência. Entre os dois, como um osso velho disputado num cabo-de-guerra entre cães furiosos, a pobre Ucrânia

A Ucrânia, para os russos, é parte inseparável da própria Mãe-Pátria, e nada – nem mesmo a realidade – poderia convencê-los de que sua ação não é de “libertação” de ucranianos sujeitos indevidamente a nazipapistas. O mesmo Patrushev também qualificou de “blasfema” a suposta tentativa por parte das milícias neonazistas ucranianas de continuar a obra de Hitler e destruir a população russa “por mãos eslavas”. A Rússia, onde o trono e o altar são uma só coisa, é para ele necessariamente o sol ao redor do qual orbitam todos os eslavos. Eslavos levantando-se contra a Rússia, assim, são uma “blasfêmia” contra a Santa Rússia, algo que só pode ser explicado pela maldade ocidental (logo alemã, logo papista, logo apostática e nada menos que demoníaca).

Já do outro lado é o Destino Manifesto, o Fardo do Homem Branco unido à forma imanentista do puritanismo, que procura a seu modo “libertar” a Ucrânia pela imposição da forma atual de seu puritanismo. A Europa – em termos geopolíticos, hoje mero quintal dos EUA – já abraçou no pós-guerra tudo o que seu mestre mandou, e a questão imediata após a queda do Muro de Berlim passou a ser expandir essa Europa americanizada para o leste. Isto foi feito pela expansão da Otan e da União Europeia, e o próximo objetivo seria reduzir à Rússia ao mesmo tipo de vassalagem, assim “libertando-a” de seu “primitivismo” não americano. Esta guerra foi provocada pelos americanos exatamente para – como no Afeganistão – exaurir as forças russas e diminuir seu poder, quiçá provocando a queda do autocrata e permitindo que outro pau-mandado americano seja posto no “trono” russo. Ainda por cima, tendo abraçado outras formas de “branquitude” ao longo do tempo, o sofrimento televisionado de ucranianos louros e de olhos azuis os faz, mais uma vez, convencer-se de sua delirante missão autoproclamada de “polícia do mundo”; a mesma mentalidade que vitimou as pobres “bruxas” de Salém, bem como incontáveis pessoas de pele escura mundo afora.

São dois impérios, um em ressurgimento e outro em decadência. Um não é capaz de entender o outro, e o outro tampouco é capaz de entender o um. Entre os dois, como um osso velho disputado num cabo-de-guerra entre cães furiosos, a pobre Ucrânia. A Fronteira antiga e sofrida, onde mundos se encontram e impérios se batem. Que Deus ajude seu povo inocente!

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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