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2014 – Balanço afetivo

Ricardo Pozzo (Foto: )

*Croniqueta dedicada à Isadora, minha amiga rude-carinhosa e primeira a notar o uso obsessivo que faço da palavra afeto. E de citações de modo geral

 

Por falta de noção, tempo e espaço, li A Divina Comédia aos 17 anos. Parece que não gostei. Nessa época, tinha o duvidoso hábito de resenhar, em dois parágrafos, todo e qualquer livro que eu chegasse ao fim. Guardava tudo em uma pasta de críticas. De fato, Dante Alighieri foi arrasado pelo adolescente imberbe, o que deve ter sido muito importante para a história universal do ano de 2002. Uma das três perguntas que me faço, em uma caligrafia bem caprichada, é: “Como pode esse fluxo criminoso de fé doentia ser classificado como material clássico?” Ah, a ingenuidade. Termino o valioso excerto assim: “Resumindo, uma perda de tempo.”

Resgatando esse textinho de suma desimportância, encontro alguns paralelos com essa temporada de som e fúria que foi 2014. Antes, mais uma historinha. Dia desses, conversando com um amigo que trabalha numa editora curitibana, conversávamos sobre o seu editor e as suas relações políticas na cidade, esse personagem odiado por muitos, amado por outros. À margem disso, comentou meu amigo de que se tratava, no convívio pessoal, de uma das pessoas mais generosas que já conhecera. Logo volto a esse raciocínio. Acredite.

Para um recorte do ano: como abarcar as dimensões inexatas da vida? Analisando aspectos profissionais? Amorosos? As pessoas que entraram em sua vida? Saúde? Quem não morreu? Aliás, neste último aspecto, 2014 foi impiedoso. Levou-nos Ariano Suassuna, que, apesar de ser gagá fora dos livros, escreveu o que não foi normal; Rubem Alves, nosso melhor prosador-professor, quase ali no caixotinho; João Ubaldo Ribeiro, o último grande romancista; e Manoel de Barros, o poeta das coisas mínimas. Lembro estes agora por tê-los revisitado ao escrever obituários súbitos para a Gazeta do Povo.

No plano pessoal-profissional, um ano em que tive a oportunidade de trabalhar diariamente com jornalismo cultural, embora tenha tido de trancar a faculdade de Letras para conseguir trabalhar de dia e ler de noite – ou ver peças amalucadas com noivas penduradas no teto e homens repassando notícias da Síria comendo farofa no palco. Aliás, o teatro foi um amor recuperado. [E o troféu de peça mais louca de 2014 vai para Escravagina.] Mas, relendo alguns jornais, parece que em certa altura do campeonato acabaram os ovos do cesto e raramente meus textos saíram redondos. Inclusive, recomendo ao amigo e à amiga jornalista que não faça esse exercício de reler as próprias matérias do ano: é estrada para a decepção.

Também foi um turning point passar a escrever para uma revista mensal sobre comportamento, a Ideias, saindo um pouco da maçonaria cultural e buscando interpretar outros campos de atuação. Nesse sentido, não sei se há outra profissão, que não seja o Jornalismo, em que se possa fazer frutificar a curiosidade e a ignorância e ganhar por isso: conheci cinemas pornôs e casas de swing a trabalho. E inegavelmente trabalhei muito nesse ano, como nunca, ouso dizer. Até acordei cedo e disposto.

O RelevO, meu periódico em pele, avançou, cresceu em importância local e está, aos poucos, se legitimando no cenário cultural. Estamos indo ao quinto ano. As confusões em que nos metemos foram, de certa forma, uma validação de nossas atividades e uma certa elucidação de propósitos. Ainda nos falta, penso, maior organização estrutural. E um departamento comercial que não seja eu-mesmo-vendendo-anúncios. Alô?Interessados?

O primeiro semestre da faculdade de Letras trouxe-me a disciplina conceitual que sempre careci e uma vontade maior de formar adequadamente meus estudos, tanto para contextualização do que leio e escrevo, quanto para minhas ambições futuras de lecionar – a experiência que tive com os adolescentes da Vila Verde, há dois anos, até hoje me define. Aliás, o Política Cidadã, projeto da Gazeta do Povo, fez um vídeo em que conto essa história vestindo um terno-jornal, o que fez a coisa toda parecer um interstício entre um filme Wes Anderson e um clipe do Falcão. Foi divertido. Uma amiga a morar no Rio Grande do Sul bem definiu: ultrapassei as definições de ridículo. Sem dúvida, foi o ano em que mais fui entrevistado e mais me expus. Meu avô diria que é uma boa hora para se recolher um pouco e ser menos saliente.

Nas tramas do coração, o ano começou pesado, com uma dessas paixões arrasadoras que nos deixam irreconhecíveis. Aí escrevi uns quatro textos rancorosos e tudo se esvaiu – não foi bem assim, mas hoje me parece ter sido assim. Alguns amores de uma noite resgataram certas notas de juventude perdida e teve uma festa esse ano, meu amigo, que possivelmente não esquecerei, com um festival antológico do beijo triplo.

E, entre uma viagem e outra, a conexão São Paulo-Teresina, mas isso te conto outro dia. Por ora, 2014. As coisas foram estáveis no campo familiar, com uma ressalva em relação ao pai, que andou caindo e se quebrando. Mas logo ele estará bem. Uma e outra desavença com a mãe – a frequência nunca foi das melhores –, entretanto, nada de muito significante. Perdi alguns amigos por opção e cansaço. Ganhei outros na expansão diária do trabalho. Consegui manter aqueles leais e estáveis, os melhores, de fato.

Ah, teve o futebol. Nosso time do RelevO foi campeão do torneio do sindicato. As três partidas eliminatórias foram realmente intensas, embora não tenha jogado exatamente bem em nenhuma delas. Mas tínhamos um bom time mesmo. Voltei a fazer academia nesse fim de ano com o objetivo de reduzir as lesões musculares que me acompanharam na temporada inteira. Na última noite tive um princípio de câimbra.

Ontem, quando voltava de uma corrida leve aqui perto de casa, começou a chover repentinamente. Fiquei um pouco chateado porque não considerei uma boa hora para chover. Então, apesar do cansaço, corri mais um pouco e cheguei em casa. Aí parou de chover. Percebi que não me molhei tanto assim.

2014 foi bem isso. Algumas chuvas brandas entre memórias, amores e novos trabalhos, até abrir a porta de casa, deitar no chão, sem passado e futuro,  e ser apenas um pedaço disforme no tempo – que não tem assim tantas urgências como eu, você e o novo ano que está para começar.

Ricardo Pozzo

Ricardo Pozzo

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