Dia desses escrevi por aqui que se relacionar com alguém sempre em falta pode ser uma terrível experiência de solidão acompanhada. Ocorreu-me, diante das conversas que tive com alguns leitores após o último texto, um dos mais confessionais que já cometi, que a crônica também o é, porém, numa outra esfera, mais saudável, eu diria.
O cronista espia pelo buraco da fechadura. Seu recorte de mundo nada mais é do que um pequeno estudo de si e de sua natureza. Acontece que de tempos em tempos o que é seu se torna pertencido a um grupo de leitores que se vê traduzido em seu universo de palavras inominadas. Esta permuta, então, percorre um outro aspecto fundamental da solidão do escritor: passar a existir pra fora a partir da identificação do leitor e de seu retorno crítico/afetivo.
Ontem, uma amiga querida perguntou-me, diante da quase impossibilidade de se viver plenamente a dois, como descobrir o que não é inferno, como evitar a sanha dos volúveis deuses gregos quando se trata de amar. Difícil te dizer, senhorita, até porque eu mesmo nada sei sobre isso aí que você me inquire, mas não custa nada tentar, ora. Farei isso por outros caminhos.
Italo Calvino, em Cidades Invisíveis, tem possivelmente a melhor contribuição sobre o que é inferno sentimental e o que não é – reencontrei este trecho fabuloso na edição 2 da revista Mapa, que recomendo com a força de um centauro:
“O inferno dos vivos não é algo que virá a ser. Se já existe, é o em que já estamos, o inferno onde vivemos todo dia. Há dois modos de escapar sofrê-lo. O primeiro é fácil para muitos: aceitar o inferno e se tornar parte dele a ponto de não mais enxergá-lo. O segundo é arriscado e exige constante vigilância e apreensão: procurar aprender a reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não são o inferno, depois fazê-los resistir, dar-lhes espaço.”
O amor que sinto geralmente lança-me ao inferno interior. Por isso, ingênuo, sempre busquei amores leves e distanciei-me da perspectiva de problemas – peço desculpas a todas as mulheres que sumi sem avisar. Repare como é comovente no caos do cotidiano encontrar pessoas que resistem ao seu modo, como a amiga que se vê obrigada a controlar o inferno interior da própria mãe, a irmã que todo dia faz curativo na vizinha com diabetes, o vendedor de sorvete que me perguntou hoje se eu estava triste e eu disse que não e, então, me disse:
– Este cacto da sua calçada floresceu bem este ano, não?
E pra você, o que não é inferno?, pergunta-me novamente a leitora. Você não é inferno, senhorita, com seus anseios de porcelana e rastros de paixões fracassadas. Rubem Braga não é inferno. Sonhos, de Kurosawa, não é inferno. A Tocata e Fuga, de Bach, não é inferno. O universo escuro de Caravaggio, por mais que pareça, não é inferno – é sua contemplação. O vendedor de sorvete, admirando a beleza rude dos cactos, também não é. O surgimento de um amor, após a tristeza de um amor errado, não é inferno – o instante derradeiro em que o coração se depara com o novo e tudo remete [inconsequentemente] à possibilidade de ser feliz, de existir plenamente, transcender, enxergar deus por um momento e tocar suavemente, como quem não quer acordar uma nuvem carregada, em suas vestes de sonho.