Ricardo Pozzo| Foto:

Desamor

CARREGANDO :)

Tenho um baú de matérias jornalísticas irrealizadas. Quando trabalhava num impresso em Campina Grande do Sul tinha muita vontade de acompanhar a jornada rotineira de uma empresa funerária. Lembro até hoje o dia em que fui visitá-los para escrever sobre um sistema novo de ventilação que estava sendo implantado e ver, ao fundo, um bebê sendo acomodado num caixãozinho. Já tive diversos pesadelos com esta imagem.

Outra pauta inerte que sempre me interessou envolve o cotidiano dos lixeiros. Impressiona-me o condicionamento físico de todos, a agilidade e eficiência generalizada.  Às vezes até canso de observar. Neste caso, pensei em me preparar atleticamente por um mês e trabalhar uma semana ao lado deles. Romualdo, o lixeiro que passa aqui toda terça-feira, sempre ganha uma cerveja minha quando estou em casa. Branco, alto, classe média, conservo meus fantasmas sob controle com atos de solidariedade etílica.

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Por fim, fechando as páginas de desassossego, os ciganos aqui ao lado de casa muito me interessam. Dia desses uma senhora interpelou-me. Queria ler minha mão. Viu-me muito carregado espiritualmente na calçada. Desviei-me levemente, dizendo que não acreditava nessas coisas. Ela retrucou:

– Você nunca vai amar ninguém agindo assim.

 

Muito bom, seus contos

Tenho um problema grave: não sei escrever nada além da crônica. Não que já não tenha tentado. Já me aventurei em conto e poesia, vislumbrei a arquitetura de um romance, li manuais para livrar a imaginação do peso do cotidiano. Nada ultrapassa as três laudas. Sou absolutamente pneumático.

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Em época de convite para coletâneas, sofro em dobro. É um tal de vasculhar texto antigo em busca de algo que engane o leitor e se passe como conto. Estico o texto, tento alguma roupagem, digamos, mais literária, forço-me à criação de mentiras. Encerro o embuste com uma sensação de fracasso análoga às paixões inconclusivas que sempre tive.

Cheirando cola, vendo deus, o Calix Bento

Hoje de manhã, um frio de alquebrar os anjos, me emocionei ao ver um menino cantando hinos religiosos. Ele me contou depois de sua relação com deus – ao Escrevê-lo em minúsculo, sim, me posiciono ideologicamente –, de quando estava em colapso nas drogas e no furto, até o dia em que, depois de ser atropelado por um trem e perder uma perna, cheirou cola a noite inteira e viu o céu se abrir, de onde surgiu o seu deus triunfante e misericordioso.

Seguro as lágrimas ao ouvi-lo dizer de seu passado e cantar de improviso o que lhe vem na cabeça. Certo estava Pedro Luís ao dizer estamos em busca de um universo mais tranquilo e mais humano. Um menino que diz nunca ter escrito uma só letra, fazendo música para enriquecer o coração do planeta. Penso em lhe trazer livros que promovam algum conforto, mesmo sabendo não ser esta a função literária. Ingênuo, penso que lhe basta apenas um papel e uma caneta.

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