Na coluna desta sexta-feira, eu e meu amigo famigerado Sandi Bart narramos um episódio mutuamente constrangedor.
Cavalo sem nome
Por Sandi Bart
Prezado leitor, sou um homem e meu nome é Sandi. Não é com Y no final. Não faço ideia de onde está o Júnior. E, por algum dos acasos da vida, sou amigo do Daniel, que normalmente assina esta coluna sozinho. Não estou aqui de intrometido, ele me convidou. Assim como ele certa vez me convidou para jogar futsal, o que passamos a fazer com certa regularidade e que rendeu a história que eu passo a contar.
O leitor mais esportista saberá que em tempos de internet rápida e de regras muito flexíveis no futebol de fim de semana não é raro solicitar a alguns atletas desconhecidos que entrem em quadra para dar quórum. No caso, éramos Daniel e eu os atletas dispostos a abandonar nossos valiosos copos pós-jogo, cujo conteúdo era sofregamente consumido, como um troféu merecido por nossa literalmente suada participação no jogo anterior, para que a contenda seguinte pudesse acontecer.
Eu nunca fui exatamente brilhante em quadra, mas ao Daniel, ainda que lhe falte a humildade dos grandes jogadores, o que não lhe falta é uma bela trivela de canhota que, quando bem calibrada, é de fazer o goleiro adversário falar baixinho uma meia hora. Justamente por essa característica, chamava mais atenção que eu em quadra, admito. E de fora dela ouviam-se eventualmente alguns lamentos sentidos: “mas é um cavalo esse Daniel!”. O fato é que um dos jogadores do time principal, por algumas dessas ironias que a vida nos apresenta, passou a acreditar que o “cavalo” a que se referiam de forma positiva os espectadores era na verdade, negativamente, dirigido a mim. E junto com o “cavalo” veio o “Daniel”.
Na primeira vez que ouvi não tive certeza. Nem o rapaz que falou teve. Saiu mais um gemido: “e aí… mnhnhél”. Eu deveria ter percebido, mas a dúvida me fez calar. Um tempo depois, “fala aí, dammnhél”. E como eu, ainda incerto, não desse maior atenção ao fato, o rapaz decidiu que sim, meu nome era mesmo aquele. Desde então, ele, certo do que falava, e eu, com vergonha de corrigir só agora aquele pequeno deslize, passamos a concordar que eu tinha sido rebatizado. Daquele momento em diante, para aquele rapaz, meu nome era Daniel.
O leitor que frequenta eventos esportivos sabe que não são necessários mais do que três encontros para que os boleiros passem de meros colegas a verdadeiros amigos de longa data, especialmente porque após as partidas há aquela mesa redonda para comentar os melhores e piores lances, assim como definir estratégias para a semana seguinte, discutir sobre a temperatura da cerveja e sobre a política externa dos países do oriente médio. Cada vez mais amigos, o rapaz entendeu que poderíamos passar ao próximo nível em uma amizade – dar ao amigo um apelido. Eu não era mais um. Eu não era qualquer Daniel. Para ele, desde então, eu era o Danielzão.
Com vergonha de corrigir e de certa forma considerando cômodo ser Daniel – afinal, a despeito de saber sobre mim nada além do fato de que sou um homem e que meu nome é Sandi, saberá o leitor me dar razão quando afirmo que minha vida teria sido mais fácil caso eu realmente me chamasse Daniel – deixei que aquele rapaz, cujo nome até hoje não sei, acreditasse nisso. Não o vi mais, talvez nunca mais veja. Mas se um dia ele me chamar na rua pelo nome que julga que tenho, atenderei.
O Duplo
Por Daniel Zanella
Nunca soube muito disso de ser viril. Digo da virilidade caseira. Minha mãe, por exemplo, espera erroneamente que eu saiba abrir um vidro de conserva. Meu pai sim, ele consegue. Eu não. Por isso ele é meu pai. Também por isso, sou um reles varão, mas, como moro sozinho há quase dez anos, estou, aos poucos, entrando na categoria dos enjeitados e fracassados, o que diminui as cobranças a cada ano. No fundo, ela espera que o seu filhote, alto como uma paina e musculoso como um puff, consiga também trocar pneus adequadamente e tenha capacidade técnica para salvar um animal indefeso das garras de um pterodáctilo. Apenas tenho voz grossa, mãe.
Mentira.
Hoje fui arrumar o pneu que furou dez dias atrás. Sim, dez dias. Afinal, como não fui pra longe, o pneu reserva entendeu a minha precaução e evitou andar por locais cortantes. Fiquei sabendo do borracheiro que 1) a porca está espanada; 2) está na hora de trocar o jogo de rodas, velho; 3) se eu trocar meu carro e entrar com mais três mil saio com um Tempra bacana da loja. Um Tempra.
Tudo corria em conformidade com o ciclo de vida de uma segunda-feira quando me deparei com o sujeito mais assustador, a criatura mais medonha da cidade, o mensageiro do caos, o príncipe das trevas, o homem que sempre pergunta como está o Daniel, se referindo a outra pessoa, no caso, um amigo de futebol, cerveja e letras – posso colocar uma acentuação exagerada aqui, aos moldes dos impressos sensacionalistas de redações sem jornalistas formados?
Não sei se já aconteceu contigo, mas é muito, muito desconfortável. Primeiro que a pessoa não sabe o seu nome, que é o certo do outro. Depois ela acha que você é uma outra pessoa conhecida e, por fim, pede que mande abraços e apareça a mim mesmo.
Seu nome é ignorado. Talvez seja deus porque onipresente. Já o encontrei, além da borracharia, na fila do supermercado, em canchas obscuras de futebol, no restaurante que almoço uma vez a cada três meses, no bar que frequento raramente… Sinto-me, quando o encontro, como um duplo de Borges, como se estivesse alheio a mim, acontecendo numa outra vida, provavelmente com mais dinheiro, vendo-me de fora. Então, este ser mitológico reaparece, regularmente, para relembrar-me disso: de que a vida que desempenho não é a existente, é apenas um simulacro, onde apenas conserto pneus, mal paro um mês com uma mulher e compro porcas novas.
Despertence-me até meu nome.
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