Não foi meu primeiro carro. Mas foi o segundo. 2004 tinha vencido com galhardia a experiência da carteira de motorista provisória e era preciso um veículo mais econômico para entregar jornal com melhor eficiência e remuneração. O Gol vermelho, placa LYA 9567, ano 95, 1.0., prestação de trezentos reais por mês, foi o que deu pra fazer.
O Gol esteve diariamente comigo por dez anos. Foi trocado uma vez, em 2008, quando adquiri um carro mais novo, mas readquiri de meu pai, à época proprietário, um ano e meio depois, quando tive de entregar o carro novo ao banco por falta de pagamento – não é sem motivo que tenho uma via zerada do SCPC atrás da porta.
Desenvolvi um amor desigual por este carro.
Ele levou ao cinema a primeira namorada, uma feminista belíssima, intensa como uma quinta estação híbrida. Esteve comigo no primeiro dia de universidade. Entregou-me com credibilidade à primeira palestra literária que fiz. Acompanhou-me nas diversas feiras de livro por Curitiba e região. Deixou-me em rodoviárias e aeroportos. Guiou-me do bar até em casa sempre com segurança, calmo. Pouco quebrou.
Este carro e a segunda namorada, uma mulher de olhos verdes um tanto tristes e cativos como uma praia esquecida, tiveram uma relação ainda mais simbiótica. Na fase mais turbulenta da minha vida financeira, foi ela quem me auxiliou a recomprar o carro da família – a um preço bem abaixo do mercado, é verdade – e ele não teria retornado à minha tutoria se não fosse por ela. Viajamos por alguns cantos e, não sem razão psicanalítica, sonhei com ela esta noite. Quando terminamos, disse de meus planos de devolver a parte dela do investimento. Ela não aceitou. Nunca aceitaria. E o seu exemplo do que é o dinheiro e os seus símbolos me marcaram ad infinitum.
[Em certos dias mais melancólicos, quando me pergunto do rumo de antigos amores, é dela que me lembro, um coração brutamente caridoso – talvez hoje, com uma alma mais serena e mais entediada de desejo, nós fossemos integralmente mais felizes. Mas fomos felizes, sim, fomos. E hoje somos outros territórios.]
Bem, nesta quinta-feira cheguei em casa às 23h e estranhamente indubitável: não ir ao bar. Comecei, então, uma saga caseira de documentários, da indústria do chocolate ao império consumista do milho. Tenho um pequeno e silencioso Michael Moore dentro de mim. Ouvi alguns fados também para balancear. Era 6h e me ocorreu subitamente um surto de limpeza – tenho horror à possibilidade de barata, não tem barata aqui, mas, se começar a ter, eu morrerei de uma morte triste.
Ao retirar o lixo da cozinha e levá-lo à cestinha da esquina, umas 6h45, pensei se não era o caso de arrumar o carro, estacionando em frente de casa. Abri a porta um tanto danificada e retirei os jornais velhos de sol. Dormi cioso de ter cumprido minha função na Terra: impedir que a casa e o carro se tornem habitat confortável às baratas e buscar saber uma e outra coisa da vida.
Quando acordei, por volta de meio-dia, o carro não estava lá. Minha irmã já deu falta dele às 8h. Achou que eu estava em atividades etílicas além do usual, afinal, era véspera de feriado.
Que me perdoem todas as boas mulheres que passaram por minha vida e sumiram como a véspera do primeiro dia do mundo, mas nunca senti tamanha tristeza quanto naquele momento, como se, junto com o carro, fosse também roubada a minha memória, um braço e uma perna.
Às 15h fomos à Delegacia, fechada até terça-feira para boletins de ocorrência, assim como a criminalidade, respeitadora dos dias-santos. Fomos em seguida à Polícia Militar, que nos instruiu a realizar pelo 190 um alerta de roubo. Juntamente com os procedimentos burocráticos, a quase certeza de que um Gol razoavelmente inteiro é diamante para desmanche.
Ontem de tarde renovamos o alerta e começamos a nos organizar para ir a Joinville, passar a Páscoa com os familiares, um certo clima de cortejo fúnebre. Eis que por volta das 19h15, quando estávamos já quase entrando na cidade-forno, uma ligação a cobrar no celular do meu pai. Estavam com o carro e queriam um “resgate”.
A história que vou te contar tem contornos de verossimilhança semelhantes a destas séries norte-americanas que assistimos até a sexta temporada. Então, vamos por partes. Primeiramente, os ladrões queriam quinhentos reais para devolver o carro sem queimá-lo, o que pareceu, num primeiro momento, uma boa oferta. Meu cunhado, em Araucária, os dois ladrões à sua frente, ameaçando sua filha adolescente, adiantaria duzentos reais, contanto que trouxessem o carro até a garagem. E assim fizeram, considerando que um carro sem bateria, rádio, estepe, painel quebrado, os jornais do mês amassados – heréticos – semanticamente ainda é um carro. Ameaçaram-nos de uma pequena carnificina se não entregássemos os outros trezentos reais em duas horas.
Chegamos em Araucária em uma hora e meia e confabulamos sobre o que fazer: uns foram a favor de entregar os trezentos reais e evitar uma possível retaliação à moda antiga. Outros defenderam uma nova ida à PM, ouvir qual seria o melhor método. Venceu a segunda alternativa. (Até usei o chantagista argumento de que não fiz Jornalismo para dar dinheiro pra bandido…)
Fomos ao batalhão da PM por volta das 21h e contamos o que se passava. Enquanto narrávamos nosso drama, aportaram três viaturas e, neste ínterim, os ladrões nos ligaram exigindo que levássemos a quantia faltante do acordo draconiano em 15 minutos. A organização da operação foi incrivelmente rápida. Nós iríamos trazer os ladrões, armados ou não, para dentro de casa e no momento da extorsão a PM entraria e daria o flagrante.
E assim foi. Os dois ladrões chegaram até o portão. Meu pai pediu para que entrassem. Eles perguntaram se tinha cachorro. Não tinha. Aproximaram-se, pediram o dinheiro e em trinta segundos dois policiais chegaram pelas laterais e jogaram os dois judas – como são carinhosamente chamados –no chão. Em mais trinta segundos, as três viaturas e outros 14 policiais.
A dupla entregou o mandante da negociação.
O restante é procedimento e não vale a pena te contar. Os dois estão presos neste momento. No celular das ligações intimidantes a escrivã encontrou a seguinte mensagem, da mãe de um deles:
Você está vindo pra casa ou puxando carro pra alguém?
Nesta madrugada, um pouco antes de voltar à viagem, empurramos o carro até a garagem – agora vai sempre ficar em garagem… – e observei seu estado geral, alquebrado, em suspenso, como se um não-carro, sem funcionar, sujo, com marcas alastradas de destruição.
Na terça-feira iremos te consertar, meu carro, meu passado materializado. Ainda iremos andar por muitas destas vias que nos levam de lá para cá, de cá pra lá, na verdade, para lugar nenhum – o que ainda é bem melhor do que a rigidez da ausência e da morte, este silêncio do cipreste escoltado pela cruz.
E nós dois, se pobres, sempre tivemos sorte no amor.
Boa Páscoa!
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