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Crônicas Amazonenses – Coração deformado

Isabella Lanave (Foto: )

Coração deformado

Provavelmente você já sentiu isso: depressão pós-viagem. Não sei se já te disse, pode ser que sim, pois me repito a cada lua, deveria existir uma terminologia específica para o fenômeno de melancolia que nos acomete após retornar de outros ares e ter de novamente imergir na rotina.

Geralmente, demoro quase uma semana para dar corda ao velho mundo. O calor até incomum desta última semana em Curitiba aliviou um tanto minhas angústias de porto e, aos poucos, estou me refazendo de chão e responsabilidades. Estar em casa é não ter mais para onde fugir.

[Auxilia-me a agenda cultural curitibana. Nesta sexta-feira, a Orquestra Sinfonia Brasil apresentou na Capela Santa Maria o imponente projeto LatiniDADE. Você não conseguirá jamais, através de meus olhos, entender a grandiosidade em ver a soprano Ângela Barra cantando Eu não existo sem você – ah, velhos amores… –, de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, e o vigor de execução de Las Cuatro Estaciones Porteñas, a orbital releitura de Astor Piazzolla das Quatro Estações de Vivaldi.]

À distância e sob o signo das memórias que estou editando, consigo ler Manaus e suas idiossincrasias com mais clareza. A cidade é tão quente à noite que desconfio que o sol não se põe, ele tem insônia por detrás do breu. [Uma das principais matérias do Diário do Amazonas de 5 de setembro diz que a temperatura do AM subirá 4 graus até 2040. Desmatamento. E vejam: 11 e 12 de outubro tem Samba Manaus, “O maior evento de samba do mundo!”, segundo a organização. Os destaques do festival são SPC, Sorriso Maroto, Thiaguinho, Raça Negra, Revelação, Jeito Moleque, Arlindo Cruz e Neguinho da Beija-Flor + Bateria.

A fotógrafa e jornalista (e querida) Isabella Lanave fez uma série comovente sobre estes dias todos de opulência e imensidão. Alguns retratos dão até uma certa vontade de chorar, sabe, porque, como vou te dizer, eu deixo meu peito em cada cidade que adormeço, em cada mulher que beijo em todo o meu arsenal de equívocos e falta de jeito, e Manaus tirou-me pedaços maiores do que costumo oferecer.

Manaus também tem ratos enormes e muito lixo esparramado, baratas que se afastam dos boêmios depois que a gente pisa forte no chão da madrugada, cachorro-quente é kikão, poucos cachorros de rua, de modo geral, o Bar do Armando está sempre lotado, a passagem de ônibus custa 2,75 dilmas + a certeza de emoções e manobras intensas do motorista do seu coletivo, a exótica praia de Ponta Negra, a incrível Priscila Lira, que me acolheu com braços transatlânticos, o Museu de Numismática, histórias curiosas de atendimento ao cliente, como a curitibana que quis saber qual era o tipo de abacaxi que gostou e recebeu como resposta “É abacaxi”, a adoração por José Aldo, sim, o melhor lutador de MMA – depois de Jon Jones, claro –, táxis sem taxímetro, o companheiro de quarto que não conseguia dormir por conta da respiração irregular dos demais, a banda Alaídenegão, com sua mistura frenética de carimbó, samba, música brega e mais uma pá muito bacana de ritmos regionais, as feiras de rua caóticas e carregadas até os dentes de brasilidade, o menino absorto se banhando nas margens do Rio Tarumã…

Terminei hoje de ler a antologia poética de Jacques Brel, paraíso e inferno em doses cavalares. O seu amigo e poeta francês Alain Bosquet tece algumas palavras luminares sobre o monstro belga:

Brel cantava o absurdo e combatia-o com uma arma desarmante: uma espécie de ternura envergonhada. Brel agarrava-se com todas as forças a um amigo débil mental, a um pedaço de planície insignificante, a um noivado que ia acabar em águas de bacalhau. Brel não era lamecha (!), e falava de sua imensa solidão com palavras diretas e brutais. Segundo ele, era sempre preciso ir pedindo desculpas por ainda estar vivo. […] Brel era um poeta que revolvia as entranhas, como se quisesse conhecer melhor o segredo de um coração deformado. E acabava sempre por afinar pelos gritos, pelos uivos de nosso silêncio.

No Largo São Sebastião, onde está o Teatro Amazonas, tem uma igreja imponente. Quando fui tinha missa. Um dos hinos me comoveu:

Sois estrela de bonança

Entre as trevas a brilhar

Sois farol de esperança

A quem sulca o negro mar

Lembrei-me, por caminhos tortuosos, de Dori Caymmi, em Curitiba, contando a história da primeira vez em que ouviu Dorival cantar Sargaço Mar. Ali ele sentiu que seu pai estava se preparando para a derradeira partida.

[Em qual destino se ancoram os amores que deixamos nos braços de rios, nos copos vazios e nas palavras de saudade?]

Sacerdócio Solidão

Fui ao show de domingo do Rubi, no aconchegante Teatro da Caixa. Comprei dois ingressos, mas a moça beira-mar – “Eu tenho um barco por dentro/Seu rumo é a curva de um arco/Seguindo o arco do tempo/Que puxa a corda do barco” – acabou não indo e o ingresso sobrou, apesar de minhas frustradas tentativas de última hora de introjetar o ingresso nos amigos.

O show teve praticamente tudo o que considero absoluto em uma apresentação musical: repertório desconhecido e profundo, interpretações suntuosas, três vezes a vontade de chorar, a criação de universo próprio, entrega e honestidade intelectual.

Ouvi pela primeira vez Androginismo, de Kleiton & Kledir. Se você quiser saber, tive vontade de chorar diante das interpretações de Muito Romântico, de Caetano Veloso, Na Primeira Manhã, de Alceu Valença, e Noite Cheia de Estrelas, de Cândido das Neves, canção antiga, antiga, dos idos de 1939, muito conhecida através do repertório de Vicente Celestino.

Para encerrar a turnê afetiva por Manaus releio alguns periódicos que comprei. Todo dia a edição impressa do Jornal do Commercio, fundado em 1904, reserva uma página para resgatar as suas capas históricas. Ficamos sabendo que em 6 de setembro de 1949 um anúncio das Pílulas Xavier informava que o produto era medicamento de ação suave e efeito seguro, que expelia os vermes e fortificava o organismo.

O Hoje, de 5 de setembro, acompanhava os preparativos para Nacional x Salgueiro, jogo decisivo das oitavas de final da Série D. O Naça havia arrancado um empate em Pernambuco e precisava de apenas uma vitória simples para se classificar.

Em seguida Léo Goiano deu pistas de que o ídolo Danilo Rios pode ir para o banco também. “Ele sabe que contamos com ele e tudo pode acontecer”, encerrou. Até o fechamento desta matéria, a direção da equipe contabilizou a venda de apenas 240 ingressos.

Não deu. O jogo terminou em 2 x 2 e o Salgueiro se classificou por conta dos gols fora de casa. Não deu para o Londrina também.

Na volta de Manaus, escala em Confins (MG). Compro o Estado de Minas, edição 26.145, e leio a coluna de Affonso Romano de Sant’Anna, que termina assim:

A vida é cheia de bielas e, no entanto, temos que viajar. E lá vai o poeminha:

Meu conceito de jardim

Determina

O que é praga ao redor de mim

      Agora sou de lá apenas em livros, jornais e lembranças. Comprei num sebo do Centro de Manaus O olho de vidro do meu avô, de Bartolomeu Campos de Queirós, autor mineiro morto em 2012, que ainda não tinha lido, apenas em entrevistas, um encharcado em poesia.

Fui criado por via das dúvidas. Quando adoecia, minha mãe chamava o farmacêutico, por via das dúvidas. Mas, por via das dúvidas, acendia uma vela. Por via das dúvidas escaldava um chá. Por via das dúvidas mandava benzer. E eu, por via das dúvidas, voltava a ter saúde.

Fico em dúvida se escrevo ou não Grato Poema Fechado, de Amélia Dalomba, na porta da sala. Por via das dúvidas, não escrevo. Tenho, ao certo, um coração refugiado. A solidão talvez seja o meu sacerdócio.

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Isabella Lanave

Isabella Lanave

 

Ah, o lindo trabalho de Isabella Lanave está aqui ó: http://isabellalanave.com/blog/2013/9/9/manaus

 

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