Ricardo Pozzo| Foto:

É proibido morrer de gripe

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De como recebemos uma cidade em corpo e em literatura. A primeira coisa que me chamou a atenção ao caminhar pelas ruas de Manaus foi o intenso calor a abafar a minha tosse curitibana de quase dois meses, irmã de uma gripe mal curada.

Manaus, em mim, sempre foi Milton Hatoum e Márcio Souza. Nestes cinco dias em que fiquei na capital das opulências surrealistas, hospedei-me num hostel próximo da Avenida Getúlio Vargas – onde os ônibus circulam como se fossem derrubar o firmamento –, e próximo da livraria de rua da cidade.

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Do que não entendi no espaço urbano: o porquê das coberturas dos pontos de ônibus serem de telha, o porquê de não existir um sistema que informe o horário em que os coletivos circulam (!) e o porquê dos peruanos das praças públicas tocarem exaustivamente My Heart Will Go On.

Para quem busca a cena manauara, a Livraria Valer é um processo de letramento fundamental. A sessão de autores locais é extensa, até porque a livraria também é editora, e os livros têm edições muito caprichadas. Dos autores que conheci, comprei e li, aquele que mais me comunicou foi Benjamin Sanches, morto em 1978, autor de o outro e outros contos, assim mesmo, tudo em minúsculo, escrito em 1963 e prefaciado por Assis Brasil.

Gostei especialmente do conto o cuspe e deste trecho.

a lua tem ciúmes e conspira separar-me de ti. hoje esteve aqui quase nua. está ouvindo aquele choro? pois é ela. ficarás comigo porque te matarei antes de escurecer e conservar-te-ei na banheira. não te descobrirão, porque darei à água a cor da tua pele e direi aos anjos que dor de cabeça não é doença e que estás vivo e eu morri de gripe… meu amor, vai à farmácia e pergunta ao cozinheiro se ainda é proibido morrer de gripe.

Outro autor impressionante em meu empoderamento literário local foi Luiz Bacellar, de Sol de feira, escrito em 1973, uma espécie de jogo frutal, com um cativante glossário descrevendo origem, ocorrência e uso de cada fruto. O livro se abre assim, como a feira de domingo da Rua Eduardo Ribeiro, uma suntuosa Macondo:

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Nos tabuleiros do mercado

o sol da feira amadurece

este poema proclamado

por mil pregões quando amanhece

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mal surge o dia sobre as bancas

eis o Menino que aparece

para trazer lá das barrancas

frutos só que o rio conhece

 

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Bacellar morreu no ano passado, atropelado. Seu último rondel.

 

Além do limite da conjunção terrena

Manaus é a primeira cidade que visito que não parece se alimentar de futebol. Não vi sequer uma camisa de clube local nas andanças cotidianas. Os jornais locais cobrem o eixo Rio-São Paulo e todos aqueles com que conversei sobre o Vivaldão são unânimes no que se tange à inutilidade de um estádio gigante para a Copa, potencialmente destinado ao abandono depois dos três, quatro jogos que a cidade irá receber.

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Mais do que a ausência de paixão futebolística – a moça de olhos doces me diz que acha o jogo longo demais e se desconcentra. Certa vez foi no Maracanã, aquela coisa toda, e então o gol, todo mundo pulando, e não viu o gol. Ela encantadoramente se desconcentra –, incomoda-me, além do meu desconhecimento literário sobre os escritores amazonenses, não conhecer melhor a literatura portuguesa. Por exemplo: Amélia Dalomba, poetisa e jornalista angolana.

A moça de olhos doces me mostra o livro em que consta o monumental Grato Poema Fechado. Veja só:

Grato poema fechado

De tão grato

 

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Vamos seguir o fantástico

eterno

ilusório e único

crescer ou parecer que vamos

além do limite da conjunção terrena

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das vidas imperfeitas tantas e tão pouco perenes

                

num revés constante

 

nos muitos caminhos dos caminhos que nos dás em lições

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cónicas, cilíndricas, piramidais e cheias de luz, palpáveis

a grata certeza de sentir

a dimensão imensa de apenas “nada”

no tudo que nos dás

 

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Não é lindo? Isto que você não viu o poema tatuado no braço direito dela (ou será o esquerdo?), apesar de neste momento de leitura do livro/tatuagem a gente descobrir que está faltando uma estrofe na tatuagem.

Estamos sempre em conflito com a linguagem. Faltam-nos palavras para tanta pele e coração.

 

 

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