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Ricardo Pozzo
Ricardo Pozzo| Foto:

O compositor dizia que há canções e há momentos que não sabemos como explicar.

E há relacionamentos.

Há relacionamentos leves como uma quarta-feira de sol na praia, capazes de reduzir temporariamente o peso da existência e expandir o horizonte do tempo. Dura pouco ou o intervalo de quatro anos. É como se uma nova pessoa surgisse de dentro de nós em cores e aptidões e descobríssemos ser melhor do que somos. Vemos, alguns anos depois, como fomos felizes. Porém, então, já somos outro e não temos mais o amor antigo.

Há relacionamentos intensos e contraditórios em que a margem de cada um se estreita vertiginosamente, gerando combustão, paixão e um certo inferno provisório: o inferno nunca são os outros, somos nós e divide a mesma cama. Poucas compatibilidades se tornam imensas e o senso de realidade se esfumaça. O outro se torna nossa carne e alimento num eixo quase canibalesco.

E há relacionamentos que são a própria descida ao inferno. Margaret Atwood, em recente crítica a Doctor Sleep, mais recente livro de Stephen King, afirma que é fácil descer ao inferno, o difícil é sair dele. Nada mais elementar.

Um relacionamento imerso em terror emocional é o exercício olímpico de se afogar dentro do poço – e é muito simples afirmar que o poço é o nosso então companheiro, a nossa companheira, isso que fazemos de contar mentiras a nós mesmos para seguir vivendo.

Não. O poço também somos nós. O poço são nossas expectativas romanceadas, nossas frustrações depositadas em quem tem saldo negativo, a crueza de viver solidariamente ao lado de um holograma que nunca está onde você está – e nos enganamos em moto-contínuo, acreditando que vai passar, vai melhorar, as águas tranquilas irão chegar e será bom o sol de uma quarta-feira na praia. O poço não tem fim, sua água não é potável e sempre te surpreende com novas vazões: é como se a pessoa que se convive fosse um eterno ilusionista, seus truques são eficientes na arte do sofrimento.

Não sei se já te disse, mas não há sol no inferno. O inferno é escuro, uma tempestade interior, sarcástico em sua natureza triste, ri de nossas próprias fraquezas, calcula nosso amor e o subtrai, alimenta-se de nossa pele para mostrar que onde mais queima é onde menos se esperava: o nosso próprio coração, que julgávamos bom e tranquilo. Não, não somos bons. No inferno somos um Otelo trágico, um esfarrapado pedindo vinte e cinco centavos pra uma pinga antes de amanhecer, um coitado implorando qualquer fagulha de amor mútuo – e este amor mútuo não vem e nós seguimos acreditando e ele não vem: o que vem é a escuridão. E por mais que se esteja cansado, dorme-se mal. [Estranhamente, a escuridão acostuma, nos apiedamos do outro, mas o digno de pena somos nós.]

Ontem passei o dia inteiro bebendo e procurando algumas soluções no copo vazio. Fique tranquilo: eu almocei e jantei direitinho e o meu corpo não amanheceu hoje tão acabado quanto imaginava. E era domingo. A bebida é um traço marcante da minha personalidade: organiza meus pensamentos e impõe um certo controle da minha mão para permanecer ao lado de meu companheiro de copo, muitas vezes de sina também. Ela me elucida.

Ontem percebi que por detrás de todo o meu aparato de vivências e ambições há um homem de simples prazeres, um alguém quase sem nome que apenas quer beber tranquilamente sua cerveja de domingo ao lado de amigos razoáveis, não atrasar as contas pequenas porque, afinal, se nós devemos, nós devemos pagar, é vergonhoso dever e não pagar, não ir a algum lugar porque se deve lá, um trabalho que não somente canse fisicamente e que seja útil aos que estão ao meu redor, um bom lugar para estudar e seguir me arrebatando diante do desconhecido, uma companheira tranquila para participar da minha vida em toda a sua monotonia cotidiana – não deixe de me ver jogar a decisão do campeonato, meu futuro amor, não falte onde mais me falta, divida sua escuridão comigo, mas não para ficarmos lá. Este mundo tem lá suas cores e delícias, sabe? Prometo que domesticarei meus demônios. Nós juntaremos o que temos de bom e nos preencheremos. Um certo alguém que me traga para dentro de sua vida e não me destrua.

Entretanto, por detrás de um homem de simples prazeres há um jornalista cético, há a vida em sua diversidade angulosa. Porque viver também é o exercício de apertar o torniquete no pescoço, é responsabilidade por quem se deixa entrar em sua vida, é a certeza de que os bons momentos durarão pouco e de que nossos anseios não têm limites. A constatação que, de fato, não conhecemos o que se passa no poço do outro, que pode chegar uma sexta-feira qualquer e se decidir que é hora de tudo acabar. A vida é acordar cedo querendo dormir mais, é amar quem não quer amar e ser amado, é abdicar da própria individualidade e se flagelar, é assumir a culpa e passar recibo ao próximo que virá na vida da pessoa amada.

[Ainda assim, estamos vivos e hoje comecei a ler Memórias, de Humberto de Campos, que começa assim: Escrevo a história da minha vida não porque se trate de mim; mas porque ela constitui uma lição de coragem aos tímidos, de audácia aos pobres, de esperança aos desenganados. Sou um sujeito invariavelmente esperançoso. Afinal, estou vivo, não morto.]

Ricardo Pozzo

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