Bravura Indômita
Meu espírito cívico é mais precário do que cérebro de estudante universitário em ano de TCC. Consigo enumerar facilmente um decálogo de omissões cotidianas, de episódios no trânsito aos amigos que sei que estão sendo traídos, mas não sei como falar. [Aqui cabe uma explicação: muitas vezes a gente evita dizer o que deve dizer porque não tem como provar biblicamente. Então, não se diz. Ou se diz? Não sei.]
Mas em duas situações prosaicas baixa em mim a alma mais indômita dos faroestes de Sergio Leone: fila de balada e carro estacionado irregularmente em vaga de idoso. Você não compartilha da mesma revolta de ter um amigo dentro do estabelecimento dizendo que o lugar não está nem um pouco cheio e a entrada ser metodicamente lenta para dar a impressão de que o local está bombando?
Na Universidade Positivo, onde estou encerrando minha graduação em Jornalismo, os taxistas e carregadores de todo tipo de quinquilharias se aproveitam do fato de quase nunca as vagas destinadas aos idosos estarem totalmente preenchidas. Isso faz com que o elemento se julgue no direito de usar a vaga ociosa para esperar o tempo que for necessário ou descarregar frutas com a calma dos monges budistas.
Antes de ontem, na saída da palestra Múltiplo Leminski – onde falei habilmente sobre Munhoz & Mariano e alguns detratores do bardo curitibano me abraçaram quase emocionados depois, calma, gente, pra quê esse clima de Fla-FLu?… –, um pessoal de um furgão amontoava umas caixas de ovos e outras coisas que não identifiquei. Passei dizendo para eles apurarem porque estavam estacionados irregularmente. O motorista, que fiscalizava a logística toda, olhou-me com a maior cara de desprezo que lhe era possível e disse-me que iam demorar o tempo que fosse necessário.
Então, paradoxalmente baixou-me o espírito cívico comum: fiquei extremamente nervoso e fui caminhando rapidamente até o meu carro, onde fiquei vociferando sozinho o que devia ter dito para aquele sem-vergonha.
Homem Velho
Sou especialista em dar opiniões que ninguém se importa. Por exemplo: Roger Federer. Por mim, ele deveria jogar até os 40 anos enquanto ele perder apenas para os Top 10. Sim, ele vai perder para uns azarões aí de tempos em tempos, mas de forma casual e apenas quando o adversário estiver num dia sacrossanto.
Vê-lo bem em dois ou três games por partida é o suficiente para relembrar o que disse David Foster Wallace sobre ele: ver Roger Federer é uma experiência religiosa.
“Quase todo mundo que ama o tênis e acompanha o circuito masculino na televisão teve, nos últimos anos, o que pode ser denominado de Momentos Federer. São ocasiões em que, assistindo ao jovem suíço jogar, a mandíbula despenca, os olhos saltam para fora e os sons produzidos fazem o cônjuge aparecer na sala para ver se você está passando bem”.
O longo e sublime artigo de Wallace está incluso em Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio Que Longe de Tudo, da Companhia das Letras, e sempre me vem à cabeça em períodos de discussão da aposentadoria ou não do suíço.
Rogério Ceni venceu tudo pelo São Paulo, menos a Copa do Brasil, não desconsiderando que nem ele, nem ninguém do Tricolor venceu o torneio, que é copa, ou seja, algo diferente de torneio, enfim. Sabemos: ninguém aposenta o Mito. Apenas ele próprio. Rogério Ceni se descolou tanto da história recente do São Paulo que se transfigurou em uma entidade. Jogadores reclamando de sua envergadura moral excessiva se tornaram agentes comuns em períodos (raros) de crise grave no Morumbi, como agora. Seu reinado é semelhante ao conceito grego de divindade e encaixa-se naquilo que Bertrand Russel afirma de que, cedo ou tarde, a todo homem chega a grande renúncia.
Rogério Ceni deve jogar enquanto puder, mesmo que perca mais do que vença. Ele e Roger Federer, que é muito mais genial do que o goleiro são-paulino, não podem ser medidos em escala temporal comum. Até porque, como dizia Schopenhauer, a característica primordial da velhice é a desilusão. E não podemos retirar dos dois esta experiência de passagem do indivíduo que foi grande para o decurso natural de vida – mesmo que, na condição de torcedor, a experiência de passagem nos custe profundo sofrimento e suplício.