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Insegurança ou da arte de não saber dar bons títulos

Primeiro, ela me chamou de inseguro. Depois disse que eu era academicista. Por fim, implorou para que eu parasse de usar as palavras frequência & afeto. Cruzei rapidamente os braços, reparei que tinha uma aranha de pernas compridas bem acima de sua cabeça e olhei-a como se fosse a última vez, com um pouco de enfado, confesso. (Tocava Lamartine Babo, ela nunca gostou.)

Levantei da cadeira, fui até a geladeira e abri uma cerveja. Sentei tranquilamente no sofá, me espalhando. E ela continuava ali, dizendo que eu era impaciente, arrogante, que não parava de perguntar coisas imperguntáveis e que ela era assim mesmo: deu-me exemplos ordinários, rabiscou uma fórmula, citou algum pensador do Direito Criminal, chamou alguém de genial. E eu só pensava quando ela iria embora, vá embora, vá embora, e se devolveria meus livros.

E ela foi, levando dois pares de brincos anteriormente esquecidos, uma escova emprestada e duas garrafinhas de água, uma delas vazia. Também aproveitou o ensejo para dizer que eu trepo mal. Nisso concordamos. Esqueceu dois livros.

*

Quando a conheci, era madrugada e seus olhos brilhavam ao falar de Wislawa Szymborska. Deixei a falar, falar, falar, como se fosse a inauguração de uma cidade. Reparei em alguns tiques provavelmente oriundos de algum caso clínico – aqui eu fiz diversas perguntas mentais, mas não direi quais por motivo de: ninguém merece mais um cronista que pensa perguntas.

Era o segundo vinho quando encostei em sua mão, que tremeu ligeiramente. Ou era a minha? [error] Então a beijei feito um navegante descendo em um porto de sete desertos, querendo o território todo. Voltei para casa, duas horas depois, pensando na vitória do Internacional na Argentina e se a veria no dia seguinte.

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Fomos em shows, festas, casas estranhas, ruas inacabadas, bares suspeitos. Bebemos em pé, na cama, deitados no chão, diretamente do copo do outro, aquilo que pingava do teto – e o que pingava tinha gosto de ____________ (coloque aqui qualquer expressão amorosa de seu agrado, não estou para isso hoje) –. Em uma das manhãs, enquanto ela dormia, fiquei parado na janela observando o fluxo, com pouca vontade de ir embora.

Então, os desentendimentos, as desinteligências, a inconformidade, meus exageros em potencial, o necessário tutorial do desapego: querer o guarda-chuva de volta (mentira, nem é meu, não sei como foi parar em casa, pode ficar), lembrá-la de que não sabe dar bons títulos aos seus textos de ambições literárias – eu também não, ao menos isso tínhamos em comum –, os ruídos de comunicação, a despreocupação com o peso das palavras, a lembrança de que preciso ler o post “30 Falácias Mais Comuns Utilizadas em Discussões” que um amigo recomendou. Como estou cansado hoje.

 

*

Agora tudo é silêncio, escuridão, formas de magoar o outro, reclamações aos amigos – que precisam nos ouvir e garantir nossas certezas –, formas sempre favoráveis de observar o pássaro preto, notas distantes de beleza e paz, bares enterrados, planos abortados, coração retraído, análise dos equívocos, celulares que não apitam mais, tristeza, desamor, perda da admiração. E nada.

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