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Ricardo Pozzo
Ricardo Pozzo| Foto:

Na chuva, no banquinho

Eu não queria falar pra você sobre isso, mas parcialmente terei. É que este último fim de semana foi estranhamente vivido em casa: TCC. Fiz o que podia, meu irmão, minha irmã, para não fazer deste rito de passagem comum uma montanha maometana de minhas crônicas.

Bem, fiquei em casa porque tive que escrever as considerações finais, corrigir os apontamentos da orientadora – alguns não fiz por pirraça, terei que me explicar amanhã – e até arrefeci nos hábitos etílicos.

Pude perceber nestes três dias de reclusão, entre uma e outra olhadinha lá pra fora, que a vizinha está triste. Seu namorado não está mais aparecendo no portão como fazia todo sábado depois do almoço. Hoje é domingo, está chovendo e a vizinha está triste.

E não é pouca chuva. Ela está na garagem, observando a calha. Espeto meu olhar entre um vão da cortina de minha sala porque estou quase certo do que ela vai fazer agora. Sim. Ela vai andar na chuva. Não acho muito sensato. Ela molha a mão, passa-a no rosto, molha o pé: está na chuva. Vizinha, vai te dar uma gripe assim! Sai da chuva, vizinha! Não, vizinha…

Ela dá a volta na casa, sem pressa alguma, sem importância de si. E agora ela senta num banquinho ao canto do muro. E a chuva cai, cientificamente.

Ricardo Pozzo

Ricardo Pozzo

 

Traste

Já contei em algum lugar do passado a minha fascinação pelas atendentes de supermercado. Tenho o ímpeto de conversar com todas. Dias atrás comecei a sair com uma, mas ela saiu do emprego, o que diminuiu um tanto de meu alumbramento. Você não precisa me dizer: não deve ser fácil lidar com o público, o salário ruim, as condições precárias de trabalho, gerentes perniciosos, turnos esgotantes, a repetição.

Mas, veja aqui, você vê, através de seu caixa, a cidade passar, pode especular o que as pessoas farão de suas vidas, pode notar os ânimos dos casais, retribuir os olhares dos homens solteiros, pesquisar os hábitos etílicos da época, adentrar a densidade dos relacionamentos que começam e pensar se darão ou não darão certo, criar seu bairro, à moda de Gonçalo Tavares – ah, saudades de Manaus…

Pergunto à minha atendente o que irá fazer deste sábado:

– Vou dormir.

– No sábado? Tem que trabalhar amanhã cedo?

– Não, não. Vou dormir porque estou precisando. Não dormi os últimos três dias. E é por causa desse traste aí.

Passa um rapaz com uniforme do supermercado, uma, duas, quatro sacolas, bem apressado e compenetrado.

– Larguei o meu namorado por ele. Por que eu fiz isso? Por que eu fiz isso? Homem não vale nada, nada.

Pego minhas compras, agradeço sem olhar seu rosto e tento seguir em frente, além de tentar notar se meu coração se compadece dos sofrimentos que já devo ter causado às mulheres que me amaram.

Me desculpem. Me desculpem.

 

Não existe amor

Umas das mais belas e singelas crônicas de Rubem Braga se chama Receita para mal de amor.

[…] Isso eu gostaria de lhe dizer, minha amiga, com a autoridade triste do mais vivido e mais sofrido: amar é um ato de paciência e de humildade; é uma longa devoção. Você me responderá que não é nada disso; que você já chegou ao seu destinatário e foi devolvida como se fosse uma carta com o endereço errado. Que teve alguns dias, algumas horas de felicidade, e por isso agora sofre de maneira insuportável. Então lhe aconselho a comprar um canivete bem amolado e afinar dezoito pedacinhos de pau até ficarem bem pontudos, bem lisos, perfeitamente torneados – e depois deixá-los a um canto.[…] Aí, apanhe todos aqueles pauzinhos que tinha deixado a um canto e, com os pedacinhos de papel, faça uma fogueira com o máximo cuidado até que restem somente cinzas. A seguir poderá repetir a operação… 

– Adianta alguma coisa? 

Por favor, querida, não me faça esta pergunta. Nada adianta coisa alguma, a não ser o tempo; e fazer fogueirinhas é um meio tão bom quanto qualquer outro de passar o tempo. 

Curiosamente, ontem uma amiga, após o meu relato do episódio do supermercado, disse-me não acreditar no amor.

– Este amor que dizem ser o amor, aquele que todos os amantes dizem sentir, este eu nunca senti e nem sei se quero sentir.

Estou novamente pensando em amor, em quem amei, se amei, se amarei, se esta crônica será uma crônica de amor e se, assim, será pessimista ou otimista, até cogito o que pensaria Santo Agostinho de mim, olha aonde chegamos…

Otimista. Porque, das profundezas te digo, minha amiga, a moça que sentou no banquinho em meio à chuva curitibana, não sei o que ela fez, não sei o que o namorado fez, não sei de nada para que possa entender o porquê de tudo ser tão confuso e se encerrar numa chuva de domingo.

Mas, sabe, nutro por ela uma espécie de carinho ancestral, como se, antes de mim e do tempo, existisse o amor primeiro, para fazer a gente se compadecer por aqueles que estão em desamor e querê-los ver felizes e novamente inseridos no ciclo da vida humana, sem bancos solitários, com sono bom e sem canivetes bem amolados.

O amor, simplesmente.

 

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