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Ricardo Pozzo
Ricardo Pozzo| Foto:

Muito já foi dito sobre o impacto das primeiras experiências na vida de um cidadão comum, de seu primeiro amor às experiências de quase morte.

Numa crônica de Rubem Braga, dos anos 50, ele relata que na semana em que uma nave espacial pousou na Lua, o acontecimento mais importante, segundo sua territorialidade afetiva, foi o nascimento de um pé de milho em seu quintal.

Achei bem justo.

Portanto, não estou aqui para falar de amor ou de morte, temas muito mais relevantes, mas sim da aquisição de meu primeiro perfume.

Você pode não acreditar, mas deveria: este homem de aspecto peculiar e estranhos hábitos noturnos – não tão estranhos quanto um antigo dono de lan house aqui da cidade que se vestia de policial para torturar pessoas aleatoriamente em bairros periféricos – tem 29 anos e somente agora tem seu primeiro perfume.

Bem, é preciso explicar, antes que alguma das duas ex-namoradas aleguem falta de rigor do cronista, que já tive, sim, desodorantes que eram originados de perfumes, como aquele que tem nome de esporte aquático. Mas perfume-perfume, não.

Também não sei explicar qual é o tipo de perfume que agora adquiro. Sei que tem um cheiro bom e que a amiga escolheu por se tratar de um perfume que ela gosta e que sua mãe revende – achei ambos os argumentos suficientes. Leio no rótulo que devo aplicar nos pulsos, pescoço e atrás das orelhas, para melhor perfumação.

Uma moça que ficava antigamente – foi este ano, mas é como se uma era de gelo atrás – dizia que os homens apaixonariam muito mais mulheres se acertassem no perfume. Nunca dei muita importância ao argumento, até porque, além de nunca ter um perfume, deve ser bem cansativo apaixonar muitas mulheres – bastaria você, querida, que hoje foi embora mais cedo do bar e me deixou sozinho com a banda de pagode. Você ouviu a inóspita versão de Pescador de Ilusões? Tira o pé do chão! Ah, aquela parte que o cantor não conseguiu executar de Vermelho, da Fafá de Belém (a Santa Maria De Belém Do Grão-Pará, saudosa terra de sua amiga), é assim, pois pesquisei agora:

 

O velho comunista se aliançou
Ao rubro do rubor do meu amor
O brilho do meu canto tem o tom
E a expressão da minha cor

 

Eu prometi lá no começo que não iria falar de amor e morte, mas inevito-me porque são quase cinco da manhã e me deparo com um Kant, em Leitura e Ética, ribombando em mim enquanto administro um trago de uma cachaça de Morretes bem boa:

 

O amor, enquanto afeição humana, é o amor que deseja o bem, possui uma disposição amigável, promove a felicidade dos demais e se alegra com ela. Mas é patente que aqueles que possuem uma inclinação meramente sexual não amam a pessoa por nenhum dos motivos ligados à verdadeira afeição e não se preocupam com a sua felicidade, mas podem até mesmo levá-la à maior infelicidade simplesmente visando satisfazer sua própria inclinação e apetite; tão logo foi possuída e o apetite saciado, ela é descartada “tal como um limão sugado”.

 

Ah, deus… Como isso tudo é tão difícil…

Penso agora que a crônica já se encaminha para o fim e não chego a lugar nenhum, que a possibilidade de um novo amor é uma espécie de fragrância que, inédita, torna a pessoa a ser amada uma paleta de múltiplas tonalidades e que, se este amor calha de acontecer, cabe a nós não nos perder no emaranhado afetivo de nós e do outro – isso que pré-digo, talvez um tanto pessimista, dos amores que começam serem sempre fortunas pictóricas que antecedem o real e o miserável.

Ricardo Pozzo

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