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Ricardo Pozzo
Ricardo Pozzo| Foto:

Especulo que Holocausto Brasileiro, da jornalista Daniela Arbex, tenha sido o livro em que mais chorei na vida. A história dos 50 anos de atrocidades e morte de mais de 60 mil pessoas do Hospício Colônia, em Barbacena (MG), originalmente publicado como uma série de reportagens na Tribuna de Minas, me lembra daquela frase que, se não me engano, é de Santo Anselmo quando questionado sobre onde está Deus diante de todo o mal do mundo: “Na via-crúcis, vendo seu único Filho morrer por nossos pecados”.

Não sei ao certo porque estou a dizer de Santo Anselmo, afinal, sou ateu. Na verdade, sou agnóstico, mas sigo o conselho de Eliane Brum sobre a possibilidade de muitos confundirem agnosticismo com alguma religião qualquer – mesmo que o fundamentalismo ateísta remonte aos credos religiosos comuns. Um trecho específico do livro, em que o fotógrafo de O Cruzeiro passeia pelo pátio, como se estivesse a percorrer o inferno de A Divina Comédia, me comove mais do que tudo:

Os homens vestiam uniformes esfarrapados, tinham as cabeças raspadas e pés descalços. Muitos, porém, estavam nus. Luiz Alfredo viu um deles se agachar e beber água do esgoto que jorrava sobre o pátio e inundava o chão do pavilhão feminino. Nas banheiras coletivas havia fezes e urina no lugar de água. Ainda no pátio, ele presenciou o momento em que carnes eram cortadas no chão. O cheiro era detestável, assim como o ambiente, pois os urubus espreitavam a todo instante. Dentro da cozinha, a ração do dia era feita em caldeirões industriais. Antes de entrar nos pavilhões, o fotógrafo avistou um cômodo fechado apenas com um pedaço de arame. Deparou-se com três cadáveres em avançado estado de putrefação e dezenas de caixões feitos de madeira barata. Ao lado, uma carrocinha com uma cruz vermelha pintada chamou sua atenção.

Não carece de ser dito que 70% das pessoas que passaram por este processo terrível de desumanização não tinham diagnóstico de doença mental. Eram pobres, negros, homossexuais, alcoolistas, prostitutas, gente que era incômoda e acabava despejada no Colônia, à deriva.

Numa pequena sala lotada até o último centímetro, Mário Magalhães e Audálio Dantas – sabe essas pessoas que são sumidades, que parecem existir apenas em palavras e a gente tem até medo de chegar perto? – conversam sobre biografia e as questões jurídicas todas. Ouvir Mário Magalhães é como dois verões após uma temporada longa de inverno. Seu discurso é translúcido, sem excessos ou pieguice, sua retórica é esclarecedora: um jornalista dotado de um senso de responsabilidade profundo. [Comento com minha professora sobre as bússolas morais que carrego no peito. Se um dia eu lesse que Magalhães está envolvido em algum escândalo de corrupção, desconfio de que morreria de tristeza.]

Ele cita o exemplo do capitão envolvido no sumiço de Amarildo. Se ele, Mário Magalhães, resolvesse escrever uma biografia sobre este excelso funcionário público e achasse válido repassar as investigações criminais envolvendo seu nome e este mesmo sujeito considerasse que o material jornalístico depõe contra sua boa fama, o biografado teria direito a retirar o livro de circulação.

Surpreende-me negativamente ver artistas perseguidos pela Ditadura defendendo o lado mais pobre da trincheira no que tange ao cerceamento do trabalho biográfico. Quando famílias que querem velar seus mortos à sua maneira se colocam contra o direito jornalístico de biografar sem censura prévia considero um disparate, mas com alguma justificativa: a falta que essas pessoas têm de um espírito cívico mais desenvolvido, a ausência de amplitude e entendimento de que a história de um personagem público não as pertence. Agora, quando artistas que sofreram com regimes autoritários defendem posições de bloqueio me parece um caso de curto circuito mental.

Como estou num dia memorialista, recordo o perfil de Gay Talese sobre Alden Withman, o legendário obituarista do New York Times, o Sr. Má Notícia, que dizia que algumas pessoas públicas deveriam morrer a partir de certo momento de suas biografias, tanto por não terem mais nada a dizer, quanto para não mancharem suas reputações defendendo o lado torto da História.

 

Ricardo Pozzo

Ricardo Pozzo

Faz um calor aceitável no Rio de Janeiro, as mulheres locais sofrem de excesso de confiança, jornalistas bêbados parecem zumbis com alguma elegância. O produtor britânico que mais admiro no mundo, envolvido nas emblemáticas séries da BBC sobre os dinossauros, está com o rosto deitado no balcão, tal qual uma pintura de Di Cavalcanti, um círio pascal ébrio.

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