Não há em A Fita Branca uma
suástica sequer. Nem discursos inflamados de Adolf Hitler ou oficiais da SS espalhando terror entre os personagens. O novo longa-metragem do cineasta austríaco Michael Haneke, contudo, é um dos mais perturbadores já feitos sobre a gênese do nazismo. Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano, o filme busca encontrar em uma história ocorrida às vésperas da Primeira Guerra Mundial, em 1913, indícios de que já havia, nessa época, na sociedade alemã, sintomas de algo que fermentava sob a superfíce.
A trama de A Fita Branca se desenrola em um vilarejo protestante no norte da Alemanha. Numa paisagem bucólica, de aparente tranquilidade, incidentes estranhos começam a ocorrer.
O médico da aldeia se machuca feio ao cair do cavalo, derrubado por um fio de arame estendido de propósito entre duas árvores nas proximidades de sua casa. O filho pequeno do barão, rico proprietário de terras que domina a economia da região, é encontrado em um celeiro, pendurado nu e de cabeça para baixo, depois de ser chicoteado. Esses crimes desencadeiam um clima de crescente suspeita entre os moradores da localidade.
Em debate após a exibição de A Fita Branca, exibido na 33.ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que terminou na última quinta-feira na capital paulista, o diretor de fotografia do longa, Christian Berger, disse que o filme, assim como toda a obra de Heneke (de Caché), discute três temas fundamentais na obra do cineasta, nascido em Munique (Alemanha), mas criado na vizinha Áustria. São eles: culpa, responsabilidade e confronto entre gerações.
No caso de A Fita Branca, os três elementos são evidentes. Na medida em que a história avança, e novos incidentes ocorrem no vilarejo, torna-se claro que a Alemanha atravessa um período de gestação de algo que ainda não tem nome, mas se manifesta por meio de vários sintomas. O principal deles é o autoritarismo e a violência com que essa conduta vem à tona.
Esse intenso desejo pela ordem inquestionável está encarnada em personagens-chave. No todo-poderoso barão, que oprime a esposa e explora seus empregados, impondo-lhes jornadas extenuantes de trabalho e os remunerando com migalhas.
Mas esse despotismo se dá de forma mais simbólica na figura do pastor, suposto líder espiritual da comunidade. É ele que amarra as mãos do filho adolescente para que não se masturbe à noite. Também é ele que, todas as vezes que seus vários filhos o contrariam e apresentam qualquer desvio de conduta, uma traquinagem que seja, os pune com o chicote em nome de Deus. E, quando os julga puros novamente, amarra (como as braçadeiras nazistas) uma fita branca ao redor dos seus braços.
Uma obra-prima instantânea, A Fita Branca estaria para a obra de Haneke assim como Fanny e Alexander está para a filmografia de Ingmar Bergman, cineasta que, segundo Christian Berger, exerceu enorme influência sobre o austríaco.
Segundo o diretor de fotografia, não há como discutir a relação entre culpa, moral e religiosidade protestante sem recorrer a Bergman, filho de um pastor rígido e autoritário, retratado tanto em Fanny e Alexander quanto em As Melhores Intenções, cujo roteiro foi filmado pelo dinamarquês Billie August.
Para Heneke, esse modelo de autoridade e seus métodos violentos, tanto no plano físico quanto no emocional, marcou profundamente os filhos desses pais retratados em A Fita Branca. Essas crianças, personagens de grande importância no filme, tornariam-se, ao término da Primeira Guerra Mundial, a geração que consolidaria o Nacional Socialismo.
O conteúdo explosivo de A Fita Branca ganha densidade graças ao genial roteiro de Haneke, mas também por meio do excepcional trabalho de fotografia de Berger.
Rodado em preto-e-branco, com o máximo do uso de iluminação natural, o longa-metragem consegue materializar por meio de imagens que colam na memória do espectador. Narrado em tom de reminiscência confessional pelo antigo professor da aldeia, agora um ancião, a história, em princípio, parece se desenrolar em um passado mais distante do que na verdade é.
“Mas não pretendemos, em momento algum, dar um caráter nostálgico ao filme. Isso seria um erro. Haneke trabalhava nesse roteiro desde os anos 90 e chegamos até a pensar em rodar em película colorida, mas depois percebemos que esse mundo, imerso em memórias sufocadas pela culpa, tinha de ser representado em branco e preto”, conta o fotógrafo. Como referência, ele usou uma infinidade de fotos de época, pesquisadas no norte da Alemanha.
Berger relata que, como A Fita Branca fala de verdades escondidas, enterradas, e de mistérios não-desvendados, muitas cenas internas (vida privada) são propositalmente escuras. Ao ponto de o espectador mal conseguir divisar o se passa sobre a tela. Como na sequência em que o filho pequeno do médico do vilarejo acorda no meio da noite e, sem encontrar a irmã adolescente no quarto, sai tateando pela casa, em busca da menina. O que não vê, inclusive seu futuro, é terrível.
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