A obra de Clint Eastwood como diretor, por mais desafetada e avessa à noção de grande espetáculo que seja, não foge de uma tradição fundamental no cinema norte-americano.
A maior parte das tramas que o cineasta leva à tela lida, de alguma forma, com a temática do heroísmo. Mas não aquele messiânico, que pretende vender ao mundo o ideário defensor de um superpoder do indivíduo frente ao próprio destino, às adversidades, às superestruturas sociais. Os heróis de Clint Eastwood, como a boxeadora vivida por Hillary Swank em Menina de Ouro, são fortes, imbuídos de coragem, mas podem sucumbir e muitas vezes fracassam, já que são profundamente humanos e quase sempre solitários.
Em A Troca, que entra em cartaz neste fim de semana no Brasil, Eastwood reafirma esse e outros traços essenciais em sua filmografia, que em 2009 ganha outro título, Gran Torino, ainda inédito no Brasil.
A premissa de A Troca, que parte de um caso real que marcou a Justiça americana nos anos 1920 e 1930, é, por si só, bastante instigante. Em 1928, Christine Collins (Angelina Jolie) saiu para trabalhar e deixou seu único filho, Walter, sozinho em casa. Na volta, não o encontrou.
Cinco meses mais tarde, o Departamento de Polícia de Los Angeles entregou a Christine um menino que afirmava ser Walter. A mãe, no entanto, não o reconheceu desde o primeiro momento, mas as autoridades se recusaram a admitir o erro, tentando provar que, perturbada emocionalmente, a troca das crianças seria sintoma de um distúrbio mental da mulher e não de um equívoco.
Mãe solteira numa época em que filhos fora do casamento eram estigmatizados, vistos como frutos do pecado, Christine não mede esforços para provar que está certa. Deseja, sobretudo, que a polícia de Los Angeles, sobre a qual pesam várias acusações de corrupção, não desista de procurar Walter. Acaba pagando um preço bastante alto por seu inconformismo e chega a ser confinada em um sanatório para doentes mentais.
A rigor, o arco dramático descrito acima caracteriza A Troca como uma clássica odisséia vivida por um indivíduo desafiado pelo sistema, que se recusa a dar-lhe o direito à voz. Uma trama quase corriqueira no cinema norte-americano, portanto. Clint Eastwood, todavia, nada tem de banal enquanto criador e dificilmente se renderia a repetir uma fórmula já tão desgastada pelo uso.
Christine, vivida com intensidade por Angelina Jolie, é, sem dúvida, uma heroína. A Troca, todavia, vai muito além da exploração dessa coragem. Eastwood se apropria de uma personagem histórica e a reinventa – sua composição visual a aproxima das solitárias mulheres presentes em muitas das telas do pintor realista americano Edward Hopper (1882-1967). O diretor quer usar o calvário da personagem para discutir uma questão muito mais profunda: o que é, afinal, a verdade?
O filme, embora deixe claro que Christine está certa, confronta a verdade da personagem, que não tem ideia do que teria acontecido com Walter, com muitas outras. A da polícia é uma simulação, um engodo fraudulento. A da imprensa, por sua vez, se transforma com o desdobramento dos fatos, flutuante e leviana. A do pastor Briegbleb (John Malkovich), feroz crítico das autoridades municipais, se veste de discurso político, porém solidário. E há outras, aterradoras, patológicas, sobre as quais não se deve falar aqui para não estragar o impacto do belo e perturbador filme de Clint Eastwood, que não é ingênuo ao ponto de dar respostas definitivas.
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