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Quem gosta de documentários biográficos em tom didático-pedagógico, que contam a vida do personagem do berço ao túmulo, vai ficar confuso, senão decepcionado, diante da experiência de assistir a Pina. O filme de Wim Wenders, que estreou ontem no Espaço Itaú de Cinema, faz questão de não ser uma obra sobre a coreógrafa alemã, que morreu em 2009, aos 68 anos, de câncer. É dedicado a ela e ao seu legado, o abordando como organismo vivo, pulsante e em movimento, para além da existência da artista.

“Seja um pouco mais louco” ou “Supreenda-me” são alguns dos conselhos que Pina costumava dar a seus bailarinos, que são ao mesmo tempo personagens e atores no comovente espetáculo audiovisual regido pelo diretor de Asas do Desejo (1997). Em alemão, russo, inglês, francês, português, espanhol ou japonês, entre outros idiomas, eles contam, muitas vezes em depoimentos sobrepostos a suas próprias imagens em silêncio, sobre o impacto transformador de terem convivido e compartilhado experiências criativas com Pina, para quem o trabalho era uma obsessão, um vício.

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Faz sentido que, ao embarcar no Tanztheater, nome da companhia da coreógrafa, eles estivessem assinando um contrato que também previa profundos mergulhos existenciais. Uma das fundadoras de uma vertente da dança que dialoga intensamente com outras manifestações das artes cênicas, Pina queria mais do que pensar o movimento: buscava conhecer as motivações que o desencadeiam, para talvez, em certa medida, compreendê-las.

Por conta dessa busca pelo por vezes imponderável por trás do gesto, é totalmente justificável que Wenders tenha optado por realizar Pina em 3D. Afinal, é uma obra tridimensional em todos os sentidos. O recurso, que muitas vezes tem sido usado por mero exibicionismo tecnológico, pouco ou nada acrescentando aos filmes, aqui se revela essencial: capta, em detalhes, desde feixes de músculos que se movem a cada gesto até a respiração que acompanha expressões faciais, tão importantes ao conjunto da obra quanto saltos, quedas e contorções que tanto expressam por meio do corpo.

Também em decorrência do uso muito inteligente do 3D, o espectador se dá conta da importância da espacialidade no trabalho de Pina Bausch. Como seu foco sempre foi o humano, mas jamais o desvinculando do mundo, o entorno das coreografias é fundamental. Seja em palcos tradicionais, à beira de piscinas ou cânions, nas calçadas das ruas ou no algo surreal bonde suspenso de Wuppertal, cidade-sede do Tanztheater, os números de dança presentes no filme falam tanto das pessoas quanto do que as cercam. E a profundide de campo possibilitada pela tridimensionalidade nos permite estar mais próximos do que está na tela – e em vários sentidos.

Wenders, buscando escapar do acadêmico, do previsível, faz questão de trazer para o filme algumas das obras-primas de Pina, que só aparece em imagens documentais, cigarro em riste, sempre soberana como um espírito que paira e permeia o filme, sem se impor como protagonista. Está lá o Café Müller, obra magistral sobre solidão, incomunicabilidade e amor, dançada entre cadeiras ao som da música do compositor barroco Henry Purcell (1659-1695). Também aparece no documentário a desconcertante e ousada versão do Tanztheater para A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky (1882-1971), coreografada em 1913 por Vaslav Nijinsky. Mas nenhuma das peças surge inteira, linearmente, porque o intento do diretor alemão é transcender o registro e usar a criação como parte orgânica de um discurso sobre a criadora, sem defini-la, classificá-la.

Por fim, o que Pina revela de mais importante em sua estrutura fragmentada, pelo menos para mim, é o espírito libertário da artista. Avessa a fronteiras de qualquer ordem, tinha em sua companhia bailarinos de todo o mundo – que dão seus depoimentos no idioma que preferem – e das mais diversas faixas etárias. Uma das integrantes conta que Pina a fez descobrir a beleza e as muitas possibilidades de seu corpo de mais de 40 anos. E é um homem maduro, com o belo rosto marcado pelo tempo, que executa uma coreografia minimalista, porém muito expressiva, ao som da voz macia de Caetano Veloso, que canta “O Leãozinho”.

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Outra bailarina, um pouco mais jovem, negra e brasileira, diz à câmera que sua forma de prestar tributo a Pina foi tentando materializar o intangível frente a sua ausência: a leveza, que ganha corpo e movimento em saltos, quase voos, entre cadeiras (elas de novo!) que tombam enquanto o corpo e seus movimentos triunfam em um momento de indiscritível beleza. Um entre tantos.