Eryk Rocha tomava um café à beira do Mar Mediterrâneo, durante o Festival de Cannes em 2004, quando uma imagem lhe veio à cabeça. O diretor, filho do cineasta Glauber Rocha (1939-1981), estava na cidade da Côte d’Azur para exibir, na mostra competitiva, o seu curta-metragem Quimera. “Ao me ver ali, vendo um mundo celebridades, estrelas de cinema passando diante de mim, me veio à cabeça a imagem de um homem velho, solitário, a caminhar em meio à multidão no Centro do Rio de Janeiro.
Assim, no sul da França, nasceu Expedito, personagem central de Transeunte, primeiro longa-metragem de ficção de Rocha, que estreia em breve em Curitiba. “Ele é um homem que não tem ninguém, nem filhos nem amigos. Está no fundo do poço”, descreve o jovem diretor, que completou 30 anos em janeiro passado.
De fato, Expedito, no início do filme, parece um espectro, a sombra de um ser humano. Seus atos são mecânicos. Os olhos, desprovidos de expressão, vagam pelo mundo que o cerca, à procura não se sabe bem do quê. Ele perdeu a mulher e, afora uma sobrinha, que lhe leva um bolo e um livro sobre o time do Flamengo no dia de seu aniversário, ele não vê ou fala com ninguém.
Talvez por conta dessa aparente indiferença em relação a tudo e a todos, que o desempenho do ator principal, Fernando Bezerra, impressione tanto. Ao ponto de, quem não o conhece, suspeitar que ele seja um amador, um sujeito comum escolhido por Rocha para conferir maior veracidade à história. Mas não é esse o caso.
Bezerra é um ator experiente. Tem no currículo filmes, peças teatrais, participações televisivas. Quem o indicou a Rocha foi o diretor Walter Salles, produtor de Transeunte, que havia trabalhado com Bezerra no filme Linha de Passe (2008). “Eu procurava um ator há algum tempo, mas quando vi o Fernando, percebi que havia encontrado quem eu procurava.”
Epiderme do filme
Quem for assistir a Transeunte, tem de estar preparado para enfrentar uma experiência cinematográfica incomum, original. Não é um filme hermético, complicado do ponto de vista narrativo. Pelo contrário. É tão direto que, em alguns momentos, faz pensar na linguagem documental, já experimentada por seu diretor em obras como Rocha Que Voa, sobre o período em que Glauber esteve em Cuba, entre 1971 e 72, episódio pouco conhecido da biografia do diretor de Terra em Transe.
Mas há características em Transeunte que o distinguem do que se vê habitualmente nas telas. Para contar a história de Expedito, Eryk recorre a uma economia total de diálogos e a muitos closes. Faz questão de que o espectador conheça cada ruga, cada vinco no rosto dele. “Quis tocar o corpo, a pele do personagem, que tem seus 65 anos escritos no rosto. Transmitir como ele vibra e vive o mundo.”
Talvez em decorrência desse esforço de transformar Expedito no que ele chama de “a epiderme do filme”, Rocha defina seu longa-metragem não como uma obra “sobre, mas com um homem”.
Engana-se, entretanto, quem, pela sinopse de Transeunte, acredita tratar-se de uma obra deprimente, pessimista. Longe de ser um feel good movie hollywoodiano, otimista e escapista, fala do tocante processo de renascimento de um sujeito sem esperanças, cuja existência parece ter chegado ao fim após a morte da esposa, mas que, muito aos poucos, redescobre razões para tocar a vida.
Cidade
Um dos pontos altos de Transeunte é sua bela direção de fotografia em preto e branco, assinada por Miguel Vassy. A opção, que empresta ao longa de Rocha um tom intimista, reforçado pelo já citado uso dos closes e pelas muitas cenas noturnas – Expedito, afinal, é um notívago, um lobo da madrugada. Mas, para justificar sua escolha, o cineasta também recorre a seu repertório de obras referenciais: “Muitos dos meus filmes favoritos, dos diretores que admiro, como Antonioni e Rossellini, foram feitos em preto e branco”.
Essa decisão estética se mostra ainda mais pertinente se levarmos em conta que, além de Expedito, a outra grande personagem de Transeunte é a própria cidade do Rio de Janeiro, com seus sons, homens, mulheres, trânsito caótico, becos, ruas e botecos. Sobretudo na região central e histórica, por onde o protagonista se perde em busca de algo que aplaque sua solidão. A sensação, graças ao tratamento expressionista que é dado às imagens, é a de que estamos dentro da história. E esse é um dos seus muitos méritos.