Mais de 60 mil jovens brasileiros estão estudando em escolas médicas da Argentina, Paraguai e Bolívia
Até o início do século 19, os poucos médicos em atuação no Brasil eram todos graduados na Europa. A maioria dos filhos da elite da colônia tinha como destino a Universidade de Coimbra, em Portugal, para onde iam não só estudar Medicina, mas também Direito, Teologia e Filosofia. Em 1808, com a transferência do trono português para o Brasil, o país deu o primeiro passo para o início do ensino médico em terras tupiniquins. Nesse mesmo ano, o príncipe regente D. João criou a Escola de Cirurgia da Bahia e, logo em seguida, a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
Mais de 200 anos depois daquele marco histórico, o Brasil conta hoje com cerca de 452 mil médicos. São 289 escolas médicas em atividade, as quais oferecerem aproximadamente 29 mil vagas a novos estudantes todos os anos. Essa evolução, no entanto, não foi suficiente para evitar que milhares de jovens brasileiros, em pleno século 21, deixem o país em busca de um diploma de Medicina em outros países.
Se há dois séculos os brasileiros enfrentavam as longas travessias do Atlântico em busca do diploma europeu, nos dias atuais o sonho de ser médico ou médica pode ser realizado aqui bem perto, nos países vizinhos da América do Sul. Não há dados oficiais precisos, mas estimativas de empresas que trabalham com agenciamento de estudantes, instituições de ensino e órgãos governamentais levam à conclusão de que pelo menos 60 mil brasileiros estão cursando Medicina somente na Argentina, Paraguai e Bolívia. O número é o dobro do total de vagas ofertadas nas instituições públicas e privadas brasileiras.
A corrida em busca de instituições de ensino dos países fronteiriços se intensificou de cinco anos para cá. Várias cidades Argentina, Paraguai e Bolívia concentram mais estudantes brasileiros de Medicina que universitários do próprio país.
Outro polo paraguaio de atração dos jovens brasileiros é Pedro Juan Caballero, que faz divisa com Ponta Porã, em Mato Grosso do Sul. A cidade de pouco mais de 100 mil habitantes tem hoje mais de 11 mil estudantes de Medicina vindos de diversas regiões do Brasil e matriculados em oito instituições paraguaias.
Na Bolívia, Cochabamba e Santa Cruz de la Sierra são os centros urbanos que mais atraem quem se arrisca a sair do Brasil para buscar um diploma nas terras do presidente Evo Morales. Essas duas cidades concentram hoje pelo menos 15 mil brasileiros estudando Medicina – em todo o país são estimados 25 mil. São 28 faculdades bolivianas, entre públicas e privadas, que oferecem ensino médico.
O governo boliviano diz que não existe limite para matrícula de estudantes estrangeiros nas universidades privadas. Relatório da Direção Geral de Migração (Digemig), órgão responsável pelo controle de ingresso de estrangeiros no país, mostra que entre 2012 e junho de 2016 foram concedidos 30.162 vistos de residência a brasileiros, grande parte para estudantes. Só em 2014, foram matriculados 12.919 estrangeiros em universidades bolivianas, a maioria estudantes brasileiros de Medicina.
Além das chamadas ‘cidades sedes’, os brasileiros estão espalhados também em outras localidades, como La Paz, Cobija, Oruro, Potosi e Sucre, todas na Bolívia; e Assunção, Luque, Encarnación, San Lorenzo e Hernandarias, no Paraguai.
Na Argentina, boa parte dos mais de 12 mil estudantes brasileiros de Medicina estão em Buenos Aires. Mas a presença verde e amarela é visível também em La Plata, Rosário, La Rioja, Córdoba, Mar del Plata, Santa Fé e San Miguel de Tucumán.
O Ministério de Educação da Argentina diz que “não possui cifra exata do número brasileiros cursando Medicina no país, mas afirma que este curso é “o mais solicitado nas instituições de ensino argentinas por razões de prestígio, qualidade, livre ingresso e custo”. De acordo com o ministério, só entre 1º de janeiro e 31 de maio deste ano foram convalidados 2.174 certificados de conclusão de ensino médio do Brasil. Traduzindo, nos cinco primeiros meses deste ano a Argentina aceitou a matrícula de mais de 2,1 mil estudantes brasileiros em suas universidades.
A Faculdade de Medicina da Universidade Nacional de La Plata (UNLP) registrava somente 11 estudantes brasileiros em 2015. Esse número saltou para 566 agora em 2018. Na Universidade Nacional de Rosário (UNR) são cerca de 1,5 mil brasileiros no curso de Medicina. Em algumas instituições argentinas, um de cada três novos matriculados nos cursos de Medicina é brasileiro.
Ausência de vestibular e preço baixo
O número insuficiente de vagas nas universidades públicas e particulares brasileiras para atender a grande demanda de vestibulandos é apontado por estudantes e agenciadores como um dos motivos da corrida de brasileiros para esses países. Mas a ausência de vestibular e os baixos preços das mensalidades que chegam a ser até 15 vezes menor que os cobrados no Brasil – são os maiores atrativos. No caso das instituições públicas argentinas, os brasileiros podem ingressar no curso sem prestar exames e estudam de graça.
R$ 700
é o valor da mensalidade
de algumas escolas de
Medicina da Bolívia,
país que tem cerca de 25
mil estudantes brasileiros.
A maioria está concentrada
em Cochabamba e Santa Cruz
de la Sierra.
No Paraguai, a maioria dos cursos custam entre R$ 700 e R$ 1.200 por mês. Muitos estudantes que fizeram matrícula em cidades fronteiriças, como Pedro Juan Caballero e Ciudad del Este, tem a opção de morar no Brasil – Foz do Iguaçu e Ponta Porã – ou em terras paraguaias.
Na Argentina a realidade para os estudantes é um pouco mais diversificada. Enquanto grande parte estuda gratuitamente em universidades famosas, como a Universidade de Buenos Aires (UBA), outros pagam mensalidades de até R$ 2.500. As faculdades mais baratas cobram em torno de R$ 900 por mês.
A ausência de burocracia nesses países para ingressar nas universidades facilita a vida dos pretendentes. O sistema argentino exige dos brasileiros apenas o diploma do ensino médio, reconhecido nos ministérios da Educação do Brasil e da Argentina, e um documento de identidade, conhecido pela sigla DNI, emitido pelas autoridades migratórias.
A corrida de brasileiros à Argentina, no entanto, levou algumas instituições a passar a exigir um certificado de domínio do idioma espanhol. Foi o que fez o Conselho Superior da UNR, por considerar que o não domínio da língua nacional dificulta a compreensão dos conteúdos do curso.
O maior problema para quem faz a opção pela Argentina é o custo de vida. Filipe Zamluti, diretor da Flez Intercâmbios, que tem agenciado uma média de 400 estudantes brasileiros por ano para cursos de Medicina de lá, diz que para manter um estilo de vida básico é necessária uma renda (mesada) de R$ 2.500 mensais.
Na Bolívia há faculdades com valores de até R$ 700, mas tem também instituições que cobram mais de R$ 1.500. Catarina Colares Brasil, estudante de Rondônia que escolheu a cidade de Cochabamba, diz que moradia e alimentação depende muito da cotação do dólar. “Como nós trocamos reais por bolivianos para nossos gastos, quando o dólar sobe, tudo sobe para nós”, reclama.
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