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A Venezuela não é, mesmo, a Ucrânia

Estudantes da Universidade Bolivariana, filhos de trabalhadores, que defendem o governo . (Foto: )

O texto abaixo foi escrito para a edição impressa da Gazeta do Povo de hoje. São algumas observações feitas nas duas vezes em que eu trabalhei na Venezuela cobrindo eleições. Nessas ocasiões visitei as populações pobres da periferia e bairros ricos das elites de Caracas, convivi com o povo, estive nas universidades, no comércio, em eventos culturais, nos meios de comunicação e muitos outros lugares.

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Estudantes da oposição, integrantes da classe média, pedem a saída de Maduro. Foto: Célio Martins

Estudantes da oposição, integrantes da classe média, pedem a saída de Maduro. Foto: Célio Martins

Estudantes da Universidade Bolivariana, filhos de trabalhadores, defendem o governo. Foto: Célio Martins

Estudantes da Universidade Bolivariana, filhos de trabalhadores, defendem o governo. Foto: Célio Martins

Analisando a realidade dos dois países, fica claro que em pelo menos um ponto há semelhanças na crise: a profunda divisão da sociedade.

Mas em várias outras questões as diferenças são claras. Na Venezuela há setores beneficiados com programas sociais e grupos empresariais envolvidos com os negócios do regime que pendem para o lado chavista nos momentos de acirramento da crise política.

Qualquer proposta de derrubada do governo Maduro por outras vias, que não as previstas na Constituição, traz o risco de uma tragédia jamais registrada na história da América do Sul. O chavismo está enraizado em todo o país com organizações prontas para defender o regime.

Os coletivos, espalhados por bairros periféricos, são organizações revolucionárias que não pensarão duas vezes para empunhar armas. São formados por jovens [muitos nem tão jovens assim] ao “estilo Che Guevara” atentos para agir. Eles lideram comunidades, têm o controle de rádios comunitárias, jornais de bairro e outros aparatos. Muitos integrantes dos coletivos são oriundos do “Caracazo”, uma explosão social ocorrida em 1989 e que levou o ex-presidente Hugo Chávez ao poder.

As chamadas missões, responsáveis por levar adiante programas nas mais diversas áreas — como saúde, educação, alimentação, emprego, moradia, agricultura e segurança — são compostas por milhões de simpatizantes do governo que tiveram acesso a moradias, terra para produzir, assistência médica, subsídios em produtos da cesta básica de alimentação e outros benefícios oferecidos com os recursos do petróleo.

Na educação superior, o principal apoio do regime está na Universidade Bolivariana da Venezuela (UBV), criada por Chávez em 2003. Em dez anos, a instituição tem mais de 1 milhão de universitários [isso num país de 28 milhões de habitantes] espalhados em quase 200 pontos do país. Já se graduaram pela UBV quase 300 mil jovens, a maioria aliada do governo. Esses estudantes, pobres em sua grande maioria, receberam e recebem a instrução tradicional dos cursos técnicos e superiores, acrescida do apelo político e ideológico da revolução. O lema é “vencer a batalha das ideias” e reforçar a base de apoio do regime.

Quando se fala em força de segurança, a grande “sacada” de Chávez foi a criação da Milícia Bolivariana, formada por gente comum que recebe treinamento das Forças Armadas e tem acesso a armamentos. Os dados sobre os números de integrantes da milícia hoje são divergentes, mas há registros que o corpo de segurança já soma perto de 500 mil combatentes. A meta é atingir 1 milhão de milicianos até o final de 2015. E mais: a milícia responde diretamente ao presidente da República.

Há muitos outros setores que sustentam o chavismo, como o funcionalismo público, especialmente da petroleira PDVSA, que tem mais de 110 mil empregados. Há pelo menos 20 mil médicos cubanos e outro grande número de professores de educação física vindos de Cuba. Eles atuam nos bairros carentes prestando atendimento à população dentro dos programas do governo. Isso sem falar do PSUV, o partido criado por Chávez que desenvolveu células em praticamente todos os organismos do poder público e organizações da sociedade civil.

Todo esse aparato não deixa dúvida que uma investida da oposição pela força provocaria um conflito sangrento e com grande chance de derrota. Uma contrarrevolução só obteria êxito se houvesse cisão das forças armadas. Mesmo nessa hipótese, a queda do chavismo não seria tão fácil. Esse método foi tentado em 2002 e acabou fracassando.

A via mais sensata da oposição para chegar ao poder na Venezuela sem que ocorra uma matança dos dois lados é a constitucional. Mas para isso as forças oposicionistas não podem se radicalizar, como ocorreu em 2005, quando decidiram não participar das eleições legislativas e ficaram de fora do Congresso.

Nas eleições de 2010, a oposição conseguiu 69 cadeiras no Congresso contra 96 do PSUV. No ano passsado, no pleito municipal, os oposicionistas conquistaram 53 dos 335 municípios do país, entre eles a capital, Caracas, e os mais importantes do interior: Maracaibo, Valencia, Iribarren, San Cristóval, Monagos, Mariño, Arismendi e Mérida. A oposição também governa estados importantes, incluindo Miranda, que está nas mãos de Henrique Capriles, principal líder do movimento contra o chavismo.

Na Venezuela existe a figura do referendo revogatório, com poder de afastar o presidente, a partir da metade do mandato (em abril de 2016). Nesse caso a população poderá decidir pela permanência ou não de Maduro. Há ainda o juízo político por mal desempenho de funções no Tribunal Superior de Justiça. São instrumentos legítimos.

Observadores internacionais de 50 países, incluindo o ex-presidente norte-americano Jimmy Carter, consideraram o sistema eleitoral da Venezuela seguro. A oposição deve apostar nesse caminho.

A luta democrática, de acordo com a Constituição, é a melhor saída para aqueles que almejam mudar o governo da Venezuela.

Célio Martins é editor da Gazeta do Povo e cobriu duas eleições na Venezuela, em 2010 e 2012.

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