O Vale Sagrado dos Incas, nos Andes peruanos, guarda em sua paisagem os ancestrais e grandes feitos da civilização inca. Em uma área que se prolonga por mais de 100 quilômetros, a uma altitude média de 2.800 metros, estão os mais ricos registros do que foi o Império Inca, que dominou grande parte do território sul-americano entre o final do século 13 e início do século 16. São construções em pedra de casas, fortalezas, muros, templos religiosos, vastos terraços em curva de nível para produção agrícola, estradas, pontes e engenhosos sistemas de irrigação.
No Vale Sagrado e suas redondezas estão as ruínas das principais concentrações urbanas dos incas – povoados e cidades como Cusco, a capital do império, Chinchero, Huayabamba, Urubamba e Ollantaytambo. Isso sem falar da maior maravilha de todas, Machu Picchu, a ‘cidade perdida dos incas’, declarada patrimônio mundial pela Unesco.
Essa riqueza histórica, cultural e arquitetônica passou a ser ameaçada nos últimos anos com as crescentes multidões de turistas de todo o mundo que chegam à região diariamente. A explosão do turismo trouxe preocupação a autoridades, arqueólogos, historiadores, ambientalistas e moradores locais. Mas o debate sobre os riscos de destruição do que restou da civilização inca jamais havia ganhado proporção como recentemente, quando o governo peruano deu início ao projeto de construção de um aeroporto internacional no coração do Vale Sagrado.
“O aeroporto internacional de Chinchero será um grande polo de desenvolvimento para a região de Cusco e para todo o Peru, pois impulsionará o turismo e gerará novos empregos para o benefício da população.”
Martín Vizcarra, presidente do Peru, ao visitar a região onde está prevista a construção do novo aeroporto, em fevereiro deste ano.
Com as máquinas já revirando o solo em Chinchero – a 3.800 metros de altitude e a meio caminho entre Cusco e Machu Picchu – a principal questão que se levanta é se vale a pena correr o risco de deteriorar ainda mais os vestígios que ainda restam do Império Inca em troca do desenvolvimento do turismo e da economia da região. E muitos se perguntam se a própria atividade turística não estaria ameaçada no futuro com possíveis danos às ruinas.
A área escolhida para construção do novo aeroporto, na cidadela de Chinchero, simboliza os riscos que o projeto oferece. O povoado de mais de dois mil anos foi o local escolhido pelo líder inca Túpac Yupanqui – filho e sucessor do grande Pachacuti, responsável pela expansão e consolidação do império – para estabelecer a sua residência. Lá ele construiu belos palácios para seu uso pessoal e de sua grande família, implantou sistemas de produção agrícola e levantou fortalezas de segurança e templos sagrados. O vilarejo parece que parou no tempo e ainda hoje seus moradores insistem em manter as tradições e costumes incas, inclusive o idioma quéchua.
Os defensores do projeto apresentam como justificativa para construção do novo aeroporto o fato de que será possível chegar ao Vale Sagrado dos Incas em grandes aviões a partir da Europa, dos Estados Unidos e da Ásia. Hoje, boa parte dos visitantes da região viaja antes para Lima e de lá segue para Cusco, que tem um aeroporto com apenas uma pista, está saturado e fica no meio da cidade, com alta periculosidade. Para o governo, sem um novo aeroporto não será possível ampliar o turismo.
Ao falar do projeto a jornalistas, no mês passado, o ministro das Finanças do Peru, Carlos Oliva, disse que “há uma série de estudos técnicos que apoiam a construção deste aeroporto". "Este aeroporto será construído o mais rápido possível porque é muito necessário", reforçou.
Muitos moradores da região tendem a apoiar a construção diante das possibilidades de empregos, que passariam de 2,5 mil vagas, além da chegada de investimentos em hotéis, pousadas, restaurantes e outros estabelecimentos comerciais e de apoio ao turismo.
Do outro lado da polêmica, historiadores, arqueólogos e ambientalistas dizem que, para a aterrissagem, os aviões teriam que sobrevoar muito baixo o Vale Sagrado, causando danos potencialmente incalculáveis às ruínas incas. Há também os que se preocupam com a possibilidade de que a construção acabe com a bacia hidrográfica do lago Piuray, da qual a cidade de Cusco conta com quase metade do suprimento de água.
Uma das cidadelas na rota dos aviões é Ollantaytambo, com um parque arqueológico de 348 quilômetros quadrados. A cidade constituiu um complexo militar, religioso, administrativo e agrícola dos incas e em seu perímetro está guardada uma monumental obra da arquitetura incaica. Estudiosos concluíram que a cidade foi um ponto estratégico do império para administrar e controlar o Vale Sagrado, com construções que supostamente eram para depósitos agrícolas e para uso militar como muralhas e torres de vigia.
Uma das pessoas que têm se destacado na oposição ao projeto do governo peruano é a historiadora de arte peruana Natalia Majluf, da Universidade de Cambridge. Ela organizou uma petição sob o lema “Salvemos Chinchero, patrimônio cultural da humanidade”. Até quarta-feira (22), mais de 13 mil pessoas já haviam assinado a petição online pedindo ao presidente peruano, Martín Vizcarra, que pare com a construção.
“O aeroporto planejado na cidade de Chinchero é uma séria ameaça à conservação de um dos patrimônios mais importantes do mundo. Além de afetar a integridade de uma complexa paisagem inca, a construção nas proximidades do Vale Sagrado terá efeitos irreparáveis devido ao ruído, ao aumento do tráfego e à urbanização descontrolada”, diz Natalia.
“A construção de um aeroporto em Chinchero terá inevitavelmente efeitos prejudiciais em todo o Vale Sagrado dos Incas devido ao ruído, ao aumento do tráfego e à urbanização informal e descontrolada. A paisagem incomparável da cordilheira dominada pelo boné de neve, visto do platô, será destruída. Em suma, este projeto implicaria para sempre afetar a harmonia milenar deste universo.”
Trecho de petição enviada ao governo do Peru.
Além das ameaças de destruição, muita gente que está contra o projeto argumenta que um dos atrativos da região é o sentido de aventura que a viagem proporciona. São várias as maneiras, por exemplo, de se chegar a Machu Picchu, mas todas exigem tempo, esforço e muita disposição para vencer as distâncias. De Cusco até ao pé da montanha que abriga a “cidade perdida” pode-se ir de trem, mas também é possível fazer um trecho dos cerca de 100 quilômetros de carro, van ou ônibus, passando pelos povoados incas até Ollantaytambo A partir daí o visitante pode optar em fazer a ‘Trilha Inca’, uma aventura que dura 4 dias e 3 noites e é considerada uma das cinco melhores trilhas para caminhadas do mundo.
A Unesco não se pronunciou oficialmente sobre o projeto do novo aeroporto, mas tem demonstrado repetidas vezes não concordar com a ampliação do número de visitantes às ruínas. Em 2017, a organização pediu que o Machu Picchu fosse visitada, no máximo, por 750 mil visitantes. No ano passado, o número de pessoas que passaram pela montanha chegou a 1,5 milhão.
Quando foi construído pelos Incas, segundo arqueólogos e historiadores, Machu Picchu foi projetada para cerca de 1.500 pessoas. Atualmente, em épocas de pico, até 6 mil pessoas visitam a montanha por dia. Essa avalanche levou a Unesco a admitir a possibilidade de colocar a “cidade perdida” em uma lista de patrimônios mundiais em perigo.
Canadá, Espanha, Coréia e Turquia disputam projeto polêmico
Na última terça-feira (21), o Ministério de Transportes e Comunicações do Peru anunciou que quatro países apresentaram propostas finais para prestar assistência técnica na construção do novo aeroporto internacional no Vale Sagrado dos Incas. Segundo o governo peruano, os projetos de Canadá, Espanha, Coréia e Turquia serão avaliados pelas áreas técnicas do ministério para determinar o vencedor.
As autoridades peruanas responsáveis pela execução do projeto afirmaram que o contrato de assistência técnica não inclui a concessão da execução do trabalho diretamente, nem a concessão da operação, nem sua manutenção. “A assistência levará o projeto a alcançar certificações ambientais internacionais, que garantem sua integração adequada com o meio ambiente natural. Desta forma, procurar-se-á elevar os níveis atuais de serviço e cuidados ambientais para colocar o aeroporto como referência para a infraestrutura aérea”, afirmou o governo em comunicado.
Em resposta ao movimento contra o projeto, o governo disse que “o procedimento de voo estabelecido no estudo de viabilidade - que está em conformidade com as normas internacionais de segurança aeronáutica - não inclui, sob qualquer circunstância, a rota de voo de aeronaves sobre Ollantaytambo ou Machu Picchu”. De acordo com o esclarecimento, as aeronaves seguirão “uma rota oposta a esses sítios arqueológicos, sem qualquer vestígio de ruído”.
O governo peruano prevê que o novo aeroporto vai impulsionar e consolidar novas rotas internacionais diretas para o Vale Sagrado, de Bogotá, Buenos Aires, Panamá, São Paulo, entre outros importantes pontos de conexão internacionais na região. Os estudos estimam que a entrada de moeda estrangeira pela chegada de turistas nacionais e estrangeiros aumentará em 18,75% até 2060.
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