Vilã, santa, demoníaca, caridosa, romântica, professora, mãe, chefe de família, cafetina. Essas são algumas das faces de Fernanda Montenegro durante mais de sete décadas pelos palcos da vida. Ao completar 90 anos – comemorados no dia 16 de outubro –, a artista conta a sua história em Prólogo, Ato, Epílogo, autobiografia em que revela os bastidores de sua saga no teatro, no cinema, na TV e, antes de tudo, no rádio.
Ao percorrer as páginas dessa epopeia pós-moderna, uma sensação que vem à tona é se a vida de Fernanda Montenegro se mistura a alguns de seus personagens. Ou o contrário: se muitos de seus personagens contam um pouco da vida da atriz. Um mistério profundo. O que se pode conhecer é o dito – escrito – pela própria autora. “Troquei de pele pela vida afora durante setenta anos. Nunca tive realmente e definitivamente o meu próprio rosto, o meu cabelo, e nem a minha postura. No fundo, me pergunto, como faz Cecília Meireles, no seu poema ‘Retrato’: em que espelho ficou perdida a minha face?”.
As múltiplas faces da atriz e os incontáveis palcos em que representou – incluindo aí os eletrônicos - não ofuscaram a vida do ‘ser’ Fernanda Montenegro, mãe, avó, amiga, cidadã, agente política e social, mulher do presente fiel ao que pensa. Não por menos que, às vésperas de seu aniversário, a atriz virou alvo de ataques de radicais ideológicos. As críticas vieram à tona após edição da revista Quatro Cinco Um, que traz na capa Fernanda Montenegro vestida de bruxa numa fogueira de livros. Após as ofensas, artistas e outras personalidades do mundo político e intelectual saíram em defesa da atriz.
No livro de suas memórias, Fernanda Montenegro não foge às questões políticas e sociais. Fala do governo Getúlio Vargas, de Juscelino Kubitschek, da queda de João Goulart, do golpe militar de 1964, da campanha ‘Diretas Já’ e da volta da democracia. Revela detalhes do convite para ser ministra da Cultura, no governo Sarney, e dos motivos de sua recusa. Mas a riqueza da narrativa pode ser encontrada nos bastidores desses 70 anos em que ela participou da vida cultural do Brasil, atuando e vivendo com os principais nomes da constelação de artistas e produtores brasileiros. Desfilam pelas páginas nomes como Grande Otelo, Bibi Ferreira, Sérgio Cardoso, José Celso Martinez Corrêa, Cacilda Becker, Maria Della Costa, Francisco Cuoco, Walter Salles, Bruno Barreto, Cacá Diegues, Millôr Fernandes, Gianfrancesco Guarnieri, Nelson Rodrigues, Edu Lobo, Beatriz Segall e tantos outros, uma lista infindável.
As rusgas e barreiras que enfrentou e continua enfrentando não tiveram nem têm o poder de aniquilar a força criativa e o sonho da atriz. Essa resiliência fica evidente em inúmeras passagens de sua autobiografia, a começar pelas dificuldades que superou no início para seguir em frente na profissão: “...nas décadas de 1940, 1950 a profissão de atriz para uma jovem, dita de família, era insólita, constrangedora, marginal. Como ainda é hoje. A profissão de atriz ´moralmente não é recomendável´. (...) Do meu lado, com meu instinto louco, eu sabia que era isso que iria fazer e teria que encontrar um caminho, mesmo não sendo capaz de romper com a minha estrutura familiar, jamais. Sou um ser tribal. Por herança”.
Na primeira parte de Prólogo, Ato Epílogo, Fernanda Montenegro revela as origens de sua família – viaja pelos caminhos dos antepassados na Itália e Portugal –, narra a vida dura dos imigrantes em terras do pau brasil, conta como foi sua infância, a odisseia pelos velhos tempos do Rio de Janeiro – onde nasceu –, São Paulo e Belo Horizonte. E entra profundamente nas personalidades de pessoas que marcaram sua vida, como sua mãe, seu pai, avós, tias e irmãs.
“Minha avó foi a grande companheira da minha infância. Tinha a memória incandescente dos analfabetos. Era uma contadora de histórias: da carochinha, de fantasmas, de Malasarte, da Bíblia—a de Moisés, tentando entrar na Terra Prometida; a de Jacó, encontrando seu filho, José do Egito (ela costumava chorar nesse trecho). De certa forma, era quase sempre a crônica de um expatriado que dera certo”, conta Fernanda num relato permeado por acontecimentos históricos, como a ascensão de Stálin, Hitler e Mussolini e o Estado, de Getúlio Vargas.
A segunda parte é extensa e resume toda a vida prisional da atriz, desde sua entrada na Rádio MEC – onde ela se inseriu no mundo de intelectuais da época, escritores, jornalistas, professores, músicos. Em mais de 200 páginas Fernanda dá o tom da narrativa que a levou à conquista dos palcos de teatro, dos estúdios de TV e das telas de cinema. Uma espécie de poema épico com cenas de sucesso, mas também de sofrimentos, dificuldades, apuros, em que a esperança nascia a cada dia após momentos de desespero.
“Não tínhamos dinheiro e, às vezes, nos cotizávamos para comprar um livro de Drummond, de Jorge de Lima, de Rilke, de Manuel Bandeira, de Kafka. O exemplar passava de mão em mão”, recorda Fernanda em uma passagem de quando se mudou para São Paulo, nos anos 50.
Numa das revelações íntimas mais impressionantes, a atriz narra passagens dos últimos dias do ator Fernando Torres, pai de seus dois filhos – o cineasta Cláudio Torres e a atriz Fernanda Torres – e companheiro de toda a vida. “Em janeiro de 2008, depois de Fernando passar por um exame geral, me informaram, em particular, que havia um tumor num de seus pulmões. Guardei comigo a triste notícia. Nenhuma palavra, nem a ele nem aos filhos. O médico achou que, no seu caso, a doença já bastante avançada, a quimioterapia seria um sofrimento inútil diante da nicotina armazenada em seus pulmões.”
No breve epílogo de uma vida imensa, Fernanda dá um tom de despedida e, paradoxalmente belo, de vontade de viver. “Tudo vai se harmonizando para a despedida inevitável. Inarredável. O que lamento é a vida durar apenas tempo de um suspiro. Mas, acordo e canto.”
Trechos
“Dentre as centenas de cenas que gravei na tv pelos anos afora, talvez a mais lembrada seja o café da manhã com Paulo Autran de Guerra dos sexos, em 1983, do inspiradíssimo Silvio de Abreu. Nós nunca havíamos contracenado. Vivíamos flertando com tal possibilidade. E onde aconteceu? Na televisão! Está guardado para sempre. Paulo e eu tínhamos essa ponte que nem sempre se apresenta no ator: humor. O ´tempo da comédia´, o ´ser´ comediante.”
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“Ainda nas melhores lembranças domésticas, trago algumas conquistas simples, mas imorredouras – gosto dessa palavra. Adquirimos um mato dentro de Teresópolis, com uma casa de caboclo. Um sítio abandonado. Durante muitos anos, tivemos esse nosso chão. Nós nos vimos ´quase hippies´ diante daquela natureza. Por teimosia mais de Fernando (Torres), nada de luz elétrica, só banhos de bacia, estrados como camas, almofadas de crochê pelo chão e plantaçõezinhas domésticas de brócolis, ou de alface, ou de cenoura, ou de espinafre – horta em louvor à minha infância. Nossa primeira propriedade. Foi paga em oito anos, sem juros.”
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“Getúlio era um caudilho, mas a ele se deve, de saída, o voto feminino. Num contraste político e ideológico, é a ele e ao seu Estado Novo, quando o Congresso foi fechado pelo próprio Vargas, que o trabalhador brasileiro deve um primeiro e duradouro organismo oficial de atendimento social, até então impensável e terminantemente inaceitável. Meu pai, dou como exemplo, era funcionário de uma grande empresa, a Light, mas não tinha ganho social-trabalhista algum. Não tinha folga remunerada, nem férias, nem hora extra, nenhum atendimento na área da saúde. E muito menos seus familiares. Não havendo aposentadoria, o brasileiro trabalhava até se exaurir. Não existia salário mínimo.”