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Arte com base em foto da história de Colorado, Paraná
Arte com base em foto da história de Colorado, Paraná| Foto:
Arte com base em foto da história de Colorado, Paraná

Arte com base em foto da história de Colorado, Paraná

Tonho das Mortes foi um dos primeiros a chegar no Rio das Curvas depois de percorrer caminhos tortos e viver as distâncias do desterro. Com ele e Maria Divina veio uma penca de filhos, como as ninhadas de cachorrinhos. Tonho das Mortes brincava falando da escadinha de meninos e meninas, aqueles bichinhos endiabrados e ao mesmo tempo anjinhos, e, com um sorriso maroto, dizia que ainda tinha a menor de todas, que estava pulando sapeca na barriga da Maria Divina. Ninguém sabia se era menina ou menino, mas Tonho garantia que era menina. Só não sabia ele que a maleita, o sarampo, a catapora e as feridas brabas espreitavam a criançada. Maria Divina também não vislumbrava em suas premonições as desgraças escondidas embaixo das canecas e panelas de ferro sobre o fogão em brasas.

O primeiro a ser atingido por aquela sina inevitável foi o filho do meio. Quando estava para fazer sete anos, o menino, que antes vivia subindo em árvores e fazendo estripulias, colocando brasa para ver sapo engolir e amarrando tição de fogo com um cordão em rabo de gato, caiu numa crise de febre depois de ter seu sangue sugado pelos mosquitos da malária. Se contorcendo de calafrios sobre a tarimba, a criança conseguiu superar a primeira crise após mais de quatro horas de agonia. Quando já estava pulando e correndo e nadando pelos córregos da redondeza, três dias depois a maleita voltou e novamente deixou Zezinho esmorecido de febre e delírios. E assim foi se repetindo. Ele ficava bom uns dias, mas logo a doença voltava. O menino estava cada vez mais fino e já nem andava quase. Andava cambitiando com os olhos amarelos. “Esse menino tá diminuindo de tamanho, Tonho. Parece que vai desaparecer, vai virar vento. Já nem comer quer mais”, prenunciava Maria Divina.

Num dia de trovoadas sobre o ranchinho, o menino, já em estágio final de desvairamento, teve os últimos espasmos depois de uma crise de suor e calafrios. Zezinho virou vento e nem mesmo precisou voar para o desconhecido. Maria Divina chorava, mas o choro já não era suficiente para conter o desespero.

– Por que eu não morri no lugar dele? Queria eu ter morrido no lugar do meu pobrezinho, que nunca fez mal pra ninguém. Agora tá aí, sem se mexer, não fala mais, não brinca. Eu nunca mais vou escutar a voz dele me chamando. Eu quero morrer junto com ele. Quero ser enterrada junto com ele. Maldita a hora em que vim pra esse mundo pra dar cria a essas crianças miseráveis que nasceram só pra sofrer.

Tonho das Mortes abraçava a criançada, fazendo com que a tristeza saísse dos cantos do casebre e entristecesse os olhos dos pequeninos. Os periquitos tiniam doídos e os pintassilgos dobravam um estribilho agudo.

–  Maria, temos as outras crianças para criar. Não podemos fazer nada. Viver é também morrer um pouco todo dia nessa terra injusta.

–  Deus está surdo, homem. Não escuta mais a gente. Fomos largados pela sorte. Se Deus tivesse ouvido não deixaria acontecer isso que está acontecendo com a gente.

Dois meses se passaram desde que Zezinho virou vento lilás e as coisas pareciam melhorar. A maleita não voltou mais e dona Justina chorava baixinho pelos cantos do ranchinho todas as vezes que lembrava do filho morto. O Tonho não derramava lágrimas, tinha os olhos secos, mas pelos carreadores e picadas abertas no meio da mata suportava um aperto no peito. Com ele sofriam o curiango e as saracuras da lagoa; as flores de maracujá caíam das plantas e os lobos uivavam para lá d´onde estava escondido o que não se sabia.

Seguindo a sina do sertão de que desgraça pouca, quando chega, não se remedeia, logo a maleita e as verminoses atacaram o mais novo, que não tinha nem um ano de vida. A barriga do menino foi crescendo de tanto vermes e as maçãs do rosto, que antes eram rosadas e todos da família, desde os irmãozinhos e as irmãzinhas até o pai, gostavam de dar beijinhos, foram ganhando um tom amarelado. Com perebas por todo o corpo, já nem conseguia se mexer.

– Nosso filho tá pesteado de amarelão.

Zezé regurgitava lombrigas como se fosse enormes minhocas saindo da boca.  O menino pereceu poucos dias depois.

Tonho das Mortes, que durante anos a fio sonhou com a vida, abriu um limpão no mato atrás do ranchinho de sapé e ali ia cavando as covinhas para enterrar as crianças. Ele olhava para aqueles montinhos de terra onde jaziam os corpos das pequenas criaturas com uma revolta de provocar alvoroços nos bichos e reboliços das nuvens desesperadas no céu. Maria Divina já não tinha mais choro para chorar a grande desdita e só soluçava com a garganta entalada por algo sem saber o que era.

O terceiro bateu asas numa manhã de sol ardente, depois de mais de 20 dias de febre e delírio. Era uma menininha moreninha de olhos da cor de mel. E antes de fechar os olhinhos para sempre, ela ainda teve força para dizer “mãezinha, traz a Neguinha”, que era a cadelinha da família, “para eu dar um abraço nela”. E nem deu tempo de colocar a cachorrinha nos seus bracinhos e a pobrezinha foi se esmorecendo até dar o último suspiro. Cerrou as pálpebras suavemente, como num sono eterno. O Tonho se definhava de joelhos na beira da tarimba com o rosto encostado no corpinho da filha. Ele derramava dos olhos a penúria da criança morta sem ver a vida de sofrimentos e alegrias que ainda viria pela frente.

“Vamos embora desse lugar maldito, Tonho. De que adianta essa terra se nossos filhos estão morrendo. Vamos ficar sozinhos aqui, e depois morremos nós também”, clamava Maria Divina com os olhos inchados de pranto e o nariz vermelho pingando desânimo e os lábios trêmulos.

O pedido de Maria Divina foi como uma facada no peito do Tonho, que um dia sonhou em abrir o sítio e criar os seus filhos. Tonho das Mortes olhou o desalento nos troncos das árvores, nas arribações lá para o lado da Cabeceira Perdida e nas encostas depois do rio serenoso, e mesmo assim decidiu ficar.

–  Deus é grande, mulher. Ele há de ter misericórdia e as crianças não vão morrer mais. A morte visita a gente agora, há de ir embora, e só depois de muito tempo volta.

Maria Divina não comia de tanto desgosto; era só osso e pele. Ela cuidava das feridas que dilaceravam as pernas e os braços dos filhos ainda vivos. Preparava chá de hortelã e de ervas do mato para matar as lombrigas e outros vermes que estufavam a barriga dos pequenos. Amassava erva-de-santa-maria enrolada num pano para colocar em cima das perebas para espantar os mosquitos.

Quando o Tonho chegou no Rio das Curvas não se conhecia doença. A mata virgem exalava a pureza nas folhas, a chuva e a terra emprenhavam os bichos e as plantas. Água boa de beber, ar limpo a soprar pelos caminhos sem destino. O paraíso durou pouco, até que mais e mais famílias foram chegando em busca de um pedaço de chão. As matas sucumbiam aos machados e foices. Com a derrubada, tudo quanto era coisa ruim surgia, ia se proliferando, apesar de todas as rezas para que não viessem. A brisa que arejava as manhãs se transformou em tempestades e, com a devastação, vieram a maleita, a febre amarela, a gripe que deixava as pessoas de cama uma semana sem poder levantar, nuvens de insetos e as pestes de todos os horizontes. As moscas devoravam tudo, sugavam os olhinhos cheios de remela das crianças.

A desilusão inevitável chegou com uma onda de febre que colocou todos os pequenos e Maria Divina de cama. A maleita havia penetrado pelos vãos da casa junto com as nuvens de mosquitos devoradores dos restos de comida. Desesperado, Tonho caminhou pelas picadas tortuosas até o sítio do Tião Medonho e pediu para ele ajudar, para ir a cavalo até a cidade buscar socorro porque todos estavam de cama em casa e o mal rondava os arredores do ranchinho.

Tião Medonho voou em disparada com o cavalo pelas estradinhas, picadas e carreadores desviando de toco de árvores e coivaras, mas só conseguiu voltar depois de passados dois sóis e duas luas. Quando ele retornou, mal saltou do cavalo no terreiro em frente do casebre do Tonho e respirou um ar de consternação. Os anús pretos, com as asas caídas e os olhos de morte, denunciavam mais uma certeza. O desalento havia chegado por ali novamente e Tonho das Mortes veio ao seu encontro com uma aura de desgraça. Foi logo dizendo “agora não adianta mais Tião, a minha segunda menina já se foi”.

Logo a noite escura de escuridão sem estrelas no céu caiu, os outros pequenos e Maria Divina tomaram os remédios trazidos pelo Tião Medonho. O Tonho passou a noite inteira abraçado com o corpo da menininha falecida, na esperança de que a vida dela voltasse. Ele apertava em seus braços o corpo morto, já frio, tentando esquentar aquela carne inerte que até um dia antes trazia consigo o significado da continuação da vida e o sentido de estar ali.

Pela manhã, Tonho reuniu as forças que ainda lhe restavam, secou por dentro as amarguras, e começou a cavar a pequena sepultura ao lado das outras anteriores. Era uma cova rasa, não tinha sete palmos de fundura. Não, era um poço de amargura. Não corria ódio em seu sangue, mas sim indignação em seus nervos. A cada golpe de enxadão no solo vermelho, ele sentia nos torrões de terra úmida a própria carne sendo enterrada.

Depois de colocar o corpo da menina no buraco, Maria Divina veio se arrastando com uns brinquedos que ela mesma havia ajudado a pequena fazer e colocou sobre o corpo da defunta. Eram bonecas de sabugo e cabelo de milho, fronhas de pano velho cheias de painas, toalhinhas de trapos e vestidinhos de chita, feitos de pedaços de roupas usadas.

“Vamos juntar as coisas e as crianças. O Tião disse que o caminhão vai chegar lá na estrada, na cabeceira do sítio do Brito, antes do meio dia. Nunca mais eu quero lembrar desse lugar. Vamos voltar pra onde a gente nunca deveria ter saído”, disse Tonho para dona Maria Divina, que ainda não sabia da decisão do marido de partir.

Quando zarparam com as crianças magricelas e quase devoradas pelos bichos tropicais, Tonho e dona Maria Divina iam deixando pelos caminhos os pingos das lágrimas e da revolta contra a sina de sofrimento, as marcas de suas vidas. Enquanto se deslocavam, os urubus lá no alto seguiam suas sinas, prenunciando a fatalidade certa que os alimentaria de cadáveres.

Abandonada, a mata virgem do sítio se transformou aos poucos em uma sobra no meio do desmatamento que avançava até aonde a vista conseguia enxergar. Com o tempo, todos os moradores do Rio das Curvas chamavam o sítio de Mata do Tonho das Mortes. Diziam que quem passasse de noite pelos carreadores beirando a mata ouvia o choro de crianças. Eram os pagãos, filhos do Tonho das Mortes e da Maria Divina, que foram enterrados sem que nenhum tivesse sido batizado. Por isso, as almas dos pequeninos viviam vagando entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos.

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