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O governo da China está construindo o maior banco de dados de DNA do mundo administrado pela polícia, segundo um estudo publicado nesta quarta-feira (17) pelo Australian Strategic Policy Institute (ASPI). Com a cooperação de grandes indústrias nacionais e internacionais de tecnologia – incluindo dos Estados Unidos – os policiais chineses vêm coletando diariamente amostras de sangue de homens e meninos com a meta de montar um mapa genético de milhões de pessoas do sexo masculino.
O ASPI é uma organização de pesquisa que se diz independente e apartidária, mas foi fundado pelo governo australiano e é parcialmente financiado pelo Departamento de Defesa da Austrália. Com sede em Camberra, capital do país, o instituto desenvolve programas nas áreas de antiterrorismo, políticas estratégicas e de defesa, segurança nacional e política cibernética.
O relatório – intitulado “Vigilância genômica: dentro da rede de coleta de DNA da China” – detalha como, no final de 2017, o Ministério da Segurança Pública da China iniciou uma campanha nacional de coleta obrigatória de dados de DNA em uma escala impressionante. “Estimamos que, desde o final de 2017, as autoridades tenham coletado amostras de DNA de 5% a 10% da população masculina da China, ou cerca de 35 a 70 milhões de pessoas. O banco de dados de DNA forense total da China provavelmente contém mais de 100 milhões de perfis, possivelmente 140 milhões, e continua a crescer”, diz o documento.
Segundo a publicação, a coleta de DNA registrada ultimamente diferencia das realizadas em programas anteriores de coleta no Tibete e Xinjiang. Agora, as autoridades estão coletando amostras de cidadãos masculinos selecionados em toda a China. Pela metodologia utilizada, os policiais vão poder rastrear parentes masculinos de um homem usando apenas o sangue, a saliva ou outro material genético desse homem.
“Com base em mais de 700 fontes, documentamos centenas de missões de coleta de DNA lideradas pela polícia chinesa em 22 das 31 regiões administrativas da China (excluindo Hong Kong e Macau) e em mais de uma centena de municípios entre o final de 2017 e abril de 2020. A coleta de DNA ocorre em vários locais, incluindo escolas, ruas, lojas e escritórios da vila”, relatam os investigadores do ASPI.
Por que o foco em pessoas do sexo masculino? Os investigadores dizem que a prioridade em coletar amostras de homens e meninos se dá pelo fato de que os homens cometem mais crimes, segundo as estatísticas chineses.
Para dar sustentação ao estudo, o instituto cita alguns locais onde foi registrada coleta em massa de DNA. “No condado de Tunliu, na província de Shanxi, as autoridades decidiram coletar amostras de sangue de 36 mil homens e meninos, ou aproximadamente 26% da população masculina do condado, enquanto 40 mil amostras foram coletadas dos cerca de 300 mil residentes do sexo masculino no distrito de Xian'an, Província de Hubei”, citam os investigadores ao ressaltar que a coleta compulsória inclui amostras de crianças em jardins de infância e escolas primárias.
Para a polícia chinesa, segundo publicou o jornal The New York Times, o banco de dados é essencial para capturar criminosos e os doadores concordam em entregar seu DNA. Por meio do banco, a polícia teria melhores condições para garantir a segurança das pessoas. A meta é reduzir a zero a criminalidade no país. Os investigadores australianos afirmam, no entanto, que em nenhum dos casos de coleta em massa de DNA, os dados fazem parte de uma investigação forense ativa. Tampouco nenhum dos homens ou meninos visados é identificado como suspeito ou como parente de criminosos em potencial.
O instituto ASPI lembra que esforços para incluir civis inocentes em bancos de dados forenses em outros países, incluindo o Reino Unido e o Kuwait, foram considerados violações graves da privacidade e eventualmente abandonados.
A coleta massiva de amostras de DNA na China, segundo os pesquisadores, parece fazer parte de esforços maiores para aprofundar a vigilância social e desenvolver perfis biométricos multimodais de cidadãos individuais, incluindo exames de retina, impressões digitais e gravações vocais. Quando concluído, esse grande banco de dados poderia permitir à polícia conectar dados biométricos de qualquer amostra desconhecida a informações pessoais.
Mas não é só o Estado chinês que tem interesse no megaprograma de vigilância. Grandes multinacionais e as principais empresas chinesas forneceram à polícia chinesa equipamentos e propriedade intelectual para coletar, armazenar e analisar amostras de DNA. Entre as empresas citadas no relatório estão Forensic Genomics International, Beijing Hisign Technology, AGCU Scientific e Microread Genetics, todas chinesas.
Entre as empresas multinacionais participantes está a gigante de biotecnologia norte-americana Thermo Fisher Scientific. Em comunicado após a divulgação do relatório, a empresa com sede em Massachusetts disse que seus kits de DNA "são o padrão global para testes forenses de DNA".
O programa de vigilância genômica levantou questionamentos externos de especialistas e grupos de direitos humanos e também dentro da China. Muitos perguntam se a coleta massiva não viola o direito interno chinês e as normas internacionais, incluindo a Declaração Universal das Nações Unidas sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, a Declaração Internacional das Nações Unidas sobre Dados Genéticos Humanos, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção das Nações Unidas sobre Direitos das Crianças.
O governo da China não comentou o relatório divulgado pelo Australian Strategic Policy Institute (ASPI).