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A presidente interina da Bolívia, Jeanine Áñez, surpreendeu os eleitores bolivianos no dia 17 de setembro ao desistir de participar da eleição presidencial. “Pelo bem maior do país”, disse Áñez para justificar sua saída da disputa eleitoral. A decisão da presidente interina foi, na realidade, uma tentativa de impedir a vitória do grupo do ex-presidente Evo Molares – atualmente exilado do país – no primeiro turno.
Faltando apenas 12 dias para a votação – marcada para o próximo dia 18 – o ato de Áñez na tentativa de virar o jogo parece ter tido um leve impacto na disputa, a ponto de criar condições para provocar o segundo turno.
O maior beneficiado pela reviravolta foi o ex-presidente Carlos Mesa, que apresenta uma alternativa de centro ao governo. Os levantamentos de intenção de voto – na Bolívia as sondagens têm pouca credibilidade –, mostram que, apesar do crescimento de Mesa, outro opositor, o líder de direita Luis Fernando Camacho, também ‘herdou’ votos que seriam da presidente interina.
O jogo está indefinido, pelo menos é o que mostram os números de diversos institutos de pesquisas. Alguns levantamentos, como o realizado pelo Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica (Celag), com sede em Buenos Aires (Argentina), apontam que o candidato de Evo Morales, o ex-ministro Luis Arce, sairá vencedor no primeiro turno. Outros, como o encomendado pela Unitel, principal emissora de televisão da Bolívia, indicam que haverá segundo turno entre Arce e Mesa.
De acordo com o estudo do Celag, Luis Arce tem 44,4% dos votos válidos, seguido de Carlos Mesa, com 34,0%. Em terceiro lugar vem Fernando Camacho, com 15,2%. Na pesquisa encomendada pela Unitel, Arce fica com 41,2%, Mesa 33,5% e Camacho está com 17,7%.
Para vencer no primeiro turno, segundo a legislação eleitoral boliviana, um candidato tem que consquistar mais de 50% dos votos ou pelo menos 40%, desde que obtenha vantagem de, no mínimo, 10 pontos porcentuais sobre o segundo colado. Traduzindo, pela pesquisa do Celag, o candidato de esquerda Arce venceria no primeiro turno ao obter mais de 40% dos votos e uma vantagem de 10,4 pontos sobre o segundo colocado. Por outro lado, pelo levantamento da Unitel, haveria segundo turno entre Arce e Mesa.
Com a bola dividida, os apoiadores de Mesa partiram para o chamado ‘voto útil’. A estratégia é tirar votos de Camacho e, com isso, não permitir que o ex-ministro de Evo Morales obtenha vantagem superior a 10 pontos sobre o segundo colocado. O problema é que muitos apoiadores de Camacho resistem em pular para o lado de Mesa, considerado pela direita como um candidato da velha política, apoiado por políticos de esquerda e que tem como proposta uma espécie de ‘evismo moderado’.
Historiador e jornalista, Carlos Mesa, 66 anos, está em campanha pela segunda vez em menos de um ano. Ele foi candidato à Presidência no pleito de outubro de 2019, anulado após suspeitas de fraude. Antes disso, foi presidente a Bolívia entre 2003 e 2005, período em que o país passou por um dos seus momentos recentes mais conturbados. Em meio a revoltas, Mesa acabou renunciando.
Nas eleições do ano passado, o primeiro turno deu a vitória ao então presidente Evo Morales, mas o resultado foi contestado tanto por Mesa quanto por organismos internacionais. Após uma série de protestos e pressão dos militares, Evo renunciou e deixou o país acusando golpe de Estado.
O currículo de Mesa dificulta a conquista de eleitores propensos a votar no líder de direita Fernando Camacho, que há menos de um ano era desconhecido na política boliviana. Camacho popularizou após ele ter liderado as mobilizações contra a reeleição de Morales, no ano passado. Um episódio envolvendo Camacho teve grande repercussão durante a crise de 2019: ele conseguiu entrar no antigo Palácio do Governo, em La Paz, e depositou uma Bíblia em cima da bandeira boliviana alguns minutos antes do anúncio da renúncia de Morales.
Com forte discurso de teor religioso, o candidato da coligação Acreditamos – com apoio de vários partidos, como a Unidade Cívica Solidária (UCS), o Partido Democrata Cristão (PDC) e a Ação Democrática Nacionalista (ADN) – é chamado de ‘Bolsonaro boliviano’. Formado em Direito, Camacho nasceu em Santa Cruz de la Sierra, seu reduto político e onde lidera com folga as pesquisas. Seu pai, Jose Luis Camacho Parada foi presidente da Federação de Empresários Privados de Santa Cruz.
Entre os apoiadores de Arce, a aposta é que Camacho intensifique a campanha agora na reta final e consiga tirar votos de Mesa, o que aumentaria a possibilidade de o candidato de esquerda liquidar a eleição no primeiro turno.
Arce é economista e foi ministro de Economia e Finanças por duas vezes, de 2006 a 2017 e em 2019, durante os governos de Evo Morales. Pesa a seu favor o fato de muitos bolivianos atribuírem a ele o crescimento da economia do país. O PIB boliviano foi o que mais cresceu na América do Sul nos últimos 15 anos, com taxa anual média acima de 4%. A renda per capta triplicou entre 2006 e 2018, passando de US$ 1.197 para US$ 3.660. A pobreza extrema foi reduzida de 38,2% em 2005 para 15,2% em 2018. Os dados são do Banco Mundial e do Ministério da Economia da Bolívia.
Mesmo com esse trunfo, Arce corre o risco de ficar sem a presidência se a disputa for para o segundo turno. É que os eleitores de Camacho, segundo constataram as pesquisas, rejeitam Arce e tendem a votar no ex-presidente Mesa. A maioria das sondagens mostra empate ou vitória de Mesa em eventual disputa no segundo turno.