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Em seu livro O Outono do Patriarca, o Nobel de Literatura Gabriel García Márquez conta a história fictícia de um governante de um país na América Latina. A obra é uma alegoria do autoritarismo latino-americano, em que o protagonista tem uma maneira de governar fora do comum, pois nunca precisou de seus ministros para nada. O patriarca ainda acredita que comanda o país, mas há muito perdeu o poder e vive das recordações do passado.
Longe de fazer comparações entre o personagem de Márquez e Bolsonaro, a chegada de um inverno de incertezas na política brasileira remete ao outono (título da obra do escritor) tumultuado enfrentado pelo presidente. Bolsonaro atravessou o duro outono, mas algumas perguntas vieram à tona nos últimos dias. Depois de meses desgastantes, de grande pressão, conflitos e algumas derrotas, o presidente terá condições de enfrentar o ‘rigoroso inverno político’ que se desenha pela frente? O presidente ainda governa de fato ou a cada dia perde força e fica nas mãos de diversas correntes políticas que sustentam seu governo? Quais as consequências das investigações que envolvem atores políticos próximos a ele e parentes, além do surgimento de manifestações populares nas ruas contra o governo?
A resposta a essas questões só virá com o desenrolar da arrasadora luta política que se desencadeia pelo país em um ano eleitoral, agravado por uma pandemia com risco de descontrole, denúncias e inquéritos envolvendo parentes e outros atores políticos próximos do presidente, além de uma arrevesada crise entre os poderes da República.
Não bastassem os desafios do governo relacionados aos problemas que deverão advir como consequência da pandemia – queda na economia e na renda das pessoas, desemprego, aumento da pobreza –, Bolsonaro terá de enfrentar algumas batalhas que podem ser decisivas para seu futuro no comando do Executivo. Vejamos algumas delas:
Inquérito das fake news
Por maioria, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram na quarta-feira (17) a favor da constitucionalidade do inquérito aberto pelo próprio tribunal para apurar a divulgação de fake news (notícias falsas) e ameaças contra integrantes da Corte.
O inquérito das fake news investiga empresários, ativistas e políticos aliados de Bolsonaro. Os investigados são suspeitos de financiar e gerenciar uma rede de disseminação de ameaças aos ministros do STF e notícias falsas que prejudicariam desafetos políticos do presidente.
No final de maio, uma operação da Polícia Federal cumpriu mandados de busca e apreensão contra 29 pessoas próximas a Bolsonaro, como o empresário Luciano Hang, o blogueiro Allan dos Santos, a militante Sara Winter e os políticos Roberto Jefferson (PTB) e Douglas Garcia (PSL).
O complicador Queiroz
A prisão do ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, na quinta-feira (18), aproxima do Palácio do Planalto a investigação de rachadinha (esquema de devolução dos salários dos funcionários do gabinete) na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj).
Queiroz foi preso em uma casa em Atibaia (SP), de propriedade do advogado de Flávio, Frederick Wassef, que defende o senador e o presidente Jair Bolsonaro. O advogado esteve várias vezes com Bolsonaro desde que ele tomou posse na Presidência da República. A última vez foi na véspera da operação, durante a posse do ministro das Comunicações, Fábio Faria.
Fabrício Queiroz, um policial militar aposentado, movimentou mais de R$ 1,2 milhão em operações consideradas suspeitas por serem incompatíveis com seus rendimentos, segundo relatório do Conselho do Controle de Atividades Financeiras (Coaf).
Segundo promotores do Ministério Público estadual no Rio, Flávio Bolsonaro teria liderado uma organização que atuou em seu gabinete na Assembleia Legislativa entre 2007 e 2018, e parte dos recursos movimentados no esquema teria sido lavada em uma franquia de chocolate da qual ele é sócio. O parlamentar contesta as acusações e diz que tudo será esclarecido.
Pedido de cassação de Bolsonaro no TSE
Ações contra Jair Bolsonaro em tramitação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que pedem a cassação de sua chapa ao lado do vice Hamilton Mourão, avançaram em junho. Duas ações estavam na pauta do último dia 9, mas um pedido de vista apresentado pelo ministro Alexandre de Moraes interrompeu o julgamento pelo Plenário do Tribunal.
As duas ações em análise foram apresentadas pela coligação Unidos para Transformar o Brasil (Rede/PV) e Marina da Silva e pela coligação Vamos Sem Medo de Mudar o Brasil (Psol/PCB) e Guilherme Boulos. Ambas acusam suposto abuso eleitoral e pedem a cassação dos registros de candidatura e dos diplomas ou dos mandatos dos representados.
Os autores sustentaram que em setembro de 2018, durante a campanha eleitoral, o grupo virtual “Mulheres Unidas contra Bolsonaro”, que reunia mais de 2,7 milhões de pessoas, sofreu ataques de hackers que alteraram o conteúdo da página. Após alteração, a página dava a entender que que as mulheres do grupo, na verdade, apoiavam a eleição de Bolsonaro, e passou a compartilhar mensagens de apoio ao então candidato.
No total, há oito ações na Corte que tentam anular a eleição presidencial. Quatro delas tratam do suposto uso de notícias falsas pela campanha de Bolsonaro. No entanto, o julgamento dessas quatro ações ainda não tem data definida para ocorrer.
Protestos antidemocráticos e favor de Bolsonaro
O STF também analisa inquérito que apura o financiamento e a organização de protestos populares antidemocráticos, os quais pedem o fechamento do Congresso e do Supremo, além de pedidos de golpe militar estampados em faixas durante manifestações.
Algumas dessas manifestações contaram com a presença de Bolsonaro. O presidente tem dito que se tratam de “manifestação espontânea, em defesa da democracia”.
O ministro Alexandre de Moraes determinou a quebra dos sigilos bancários de dez deputados federais e um senador aliados de Bolsonaro. A pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), a Polícia Federal cumpriu mandados de busca e apreensão em endereços ligados a 21 pessoas.
Tiveram seus sigilos quebrados os deputados Daniel Silveira (PSL-RJ), que também foi alvo das buscas na manhã desta terça; e também Cabo Junio Amaral (PSL-MG), Carla Zambelli (PSL-SP), Carol de Toni (PSL-SC), Alê Silva (PSL-MG), Bia Kicis (PSL-DF), General Girão (PSL-RN), Guiga Peixoto (PSL-SP), Aline Sleutjes (PSL-PR) e Otoni de Paula (PSC-RJ). O senador Arolde de Oliveira (PSL-RJ) também teve o sigilo quebrado.
O mesmo inquérito levou à prisão Sara Winter e outros líderes do movimento 300 do Brasil, que estava acampado na Esplanada para protestar contra o Congresso e o Supremo.
Ações em tribunais internacionais
No último dia 9, o Tribunal Penal Internacional (TPI) anunciou que irá analisar uma denúncia apresentada contra Bolsonaro e sua condução da crise do coronavírus no Brasil. A representação foi apresentada pelo PDT. O documento do TPI que acusa o recebimento da petição, no entanto, é expresso ao afirmar que tal recebimento não significa que a investigação foi ou será necessariamente aberta.
Essa é uma das dezenas de ações internacionais apresentadas contra o presidente. No seu primeiro ano de governo, Bolsonaro foi alvo de 37 denúncias na Organização das Nações Unidas (ONU) por violação de direitos humanos e outros temas. Em 2020, com a pandemia do novo coronavírus, as denúncias se multiplicaram e chegaram a outras instâncias, como o Tribunal Penal Internacional (TPI), a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a Organização do Estados Americanos (OEA) e a Organização Mundial de Saúde (OMS)."
Pedidos de impeachment
Até o último dia 8, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), já havia recebido 48 denúncias ou pedidos de impeachment contra Bolsonaro.
Grande parte dos pedidos ocorreu desde fevereiro deste ano, principalmente, após o aumento de mortes devido à pandemia do novo coronavírus e das participações do presidente em manifestações a favor do fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF).
Maia tem declarado que não considera o momento ideal para pautar o impeachment. Segundo o deputado, o assunto deve ser tratado com "cuidado", sob risco de "colocar mais lenha na fogueira" em um momento de crise.