“Nenhuma religião, nada. Ele é contra Deus. Ele é contra armas. Ele é contra a energia, nosso tipo de energia”, disparou na última quinta-feira (6) o presidente dos EUA, Donald Trump, se referindo a seu oponente democrata, o católico Joe Biden, na disputa pela Casa Branca.
O ataque de Trump ao adversário democrata pode ser uma jogada para trazer o debate da campanha presidencial para o campo da religião. A estratégia do republicano é fácil de entender, segundo analistas das eleições norte-americanas: Biden é católico e pouco mais de 20% dos eleitores são católicos. Os protestantes (cristãos não católicos), como Trump, somam mais que o dobro, cerca de 43%, segundo dados do instituto Gallup.
Biden foi o primeiro vice-presidente católico dos EUA e agora tenta repetir o feito de John F. Kennedy, que em 1960 tornou-se o único presidente católico da história do país.
A acusação de Trump de que Biden é contra a religião não condiz com a prática do adversário. Em 2015, quando o Papa Francisco fez visita histórica aos EUA, Biden esteve ao lado do pontífice em todos os momentos. O então vice-presidente acompanhou Francisco na Casa Branca, no Capitólio e na missa na Basílica do Santuário Nacional da Imaculada Conceição.
Apesar de a religião de um candidato presidencial dos EUA ser hoje menos importante do que foi no passado, Trump aposta que a posição religiosa de Biden poderá afetar a disputa.
Na eleição de Kennedy, a religião foi colocada como um dos temas centrais da campanha eleitoral. O democrata – que viria a ser assassinado em 1963, quando era uma das figuras mais badaladas do mundo – precisou agir com habilidade para desfazer a preocupação de grande parte da população de que a religião de um presidente católico poderia interferir na execução neutra de seus deveres como presidente. “Eu sou não o candidato católico a presidente; sou o candidato a presidente do Partido Democrata, que por acaso também é católico. Não falo por minha igreja em assuntos públicos, e a igreja não fala por mim", declarou Kennedy em um discurso que marcou a campanha eleitoral de 1960.
A resistência do eleitor americano quanto à religião dos candidatos, no entanto, tem caído a cada década. Segundo o Gallup, em 1940, 33% dos americanos disseram que não votariam em um católico. No final de 1959, pouco antes do ano de campanha de Kennedy, 25% ainda diziam que não votariam em um católico.
A oposição do público a um presidente católico continuou a declinar, chegando a 13% alguns meses após a posse de Kennedy e, em 1967, ficou abaixo de dois dígitos.
De acordo com o Gallup, agora em 2020, apenas 4% disseram que não votariam em um católico. Em contrapartida, 18% dos americanos dizem que não votariam em um cristão evangélico, 32% não votariam em um muçulmano e 38% não votariam em um ateu.
Eleitores católicos, historicamente, não votam em bloco seguindo a religião do candidato. Dados do Gallup deste ano mostram que 49% dos católicos adultos se identificam ou se inclinam para o Partido Democrata, enquanto 43% se identificam ou se inclinam para o Partido Republicano. Nos primeiros meses do ano, 45% dos católicos aprovaram o trabalho do presidente Trump, idêntico à média nacional.
O índice de aprovação de Trump caiu após a pandemia de coronavírus, mas a semelhança entre os católicos e a média da população foi mantida; 37% dos católicos disseram aprovar Trump nas duas últimas pesquisas do Gallup, porcentual quase idêntico à média nacional, de 39%.
O fator religioso pode favorecer a estratégia de Trump de levar o debate para o campo da fé, mas não é seguro que isso vá ocorrer. Diferentemente dos católicos, outros grupos religiosos dos EUA têm perfis políticos mais definidos – protestantes evangélicos e mórmons têm forte tendência republicana, enquanto que judeus, muçulmanos e aqueles sem identidade religiosa formal tendem aos democratas.
Ao insinuar que Biden é pouco religioso, Trump também joga para os católicos praticantes – aqueles que frequentam a igreja com mais frequência. As pesquisas mostram que esses são significativamente mais republicanos na orientação e mais propensos a aprovar Trump do que aqueles que frequentam com menos frequência.
De acordo com o Gallup, Biden tem uma vantagem embutida entre os católicos que não frequentam regularmente a igreja e que são hispano-americanos. Mas o candidato democrata enfrenta seu maior desafio entre os católicos brancos não hispânicos e entre os católicos praticantes.
Outro problema de Biden na comunidade católica norte-americana está relacionado ao tema aborto. A Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos criticou o Affordable Care Act, de autoria do governo Obama, o qual exige que os empregadores forneçam cobertura de seguro para seus trabalhadores para contracepção. Biden defendeu a aprovação da lei.
Na questão do aborto, entretanto, pesa a favor do democrata o fato de ele ter apoiado, durante muitos anos, a Emenda Hyde, que proíbe o financiamento federal para o aborto.
Apesar de representar pouco mais de 20% do eleitorado, os candidatos católicos têm conseguido sucesso. Um a cada três deputados (32,5%) da atual legislatura dos EUA é católico, segundo levantamento publicado pelo Pew Research Center. Os protestantes são metade da casa (53,7%) e os judeus representam 6%, mesmo porcentual de mórmons. No Senado, apenas 20% são católicos, contra 60% de protestantes.
Biden reagiu nos últimos dias às acusações de Trump sobre sua religiosidade. “Como tantas pessoas, minha fé tem sido o alicerce da minha vida: me proporcionou conforto em momentos de perda e tragédia, me manteve com os pés no chão e humilde em momentos de triunfo e alegria. E neste momento de escuridão para nosso país – de dor, divisão e doença para tantos americanos – minha fé tem sido uma luz que guia para mim e um lembrete constante da dignidade e humanidade fundamentais que Deus concedeu a todos nós ”, disse Biden em comunicado.
Ao citar “perda e tragédia”, Biden se referiu a duas tragédias em sua família. Em 1972, o então senador do Delaware perdeu a mulher e a filha de 13 meses num acidente. Neilia Biden regressava para casa com a árvore de Natal que acabara de comprar quando o seu carro chocou contra um caminhão. A pequena Naomi e a mãe não resistiram e os dois filhos mais velhos do casal ficaram gravemente feridos. Mais de 30 anos depois, em 2015, seu filho mais velho, Joseph Robinette Beau Biden, morreu por causa de um tumor cerebral. Ele tinha 46 anos.
Hoje, quase sempre Biden leva um rosário no bolso e frequentemente o segura na mão.
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