Capa de uma das listas de imigrantes italianos com destino ao Brasil, em 1897.| Foto: Museu da Imigração/SP
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A ‘Corte di Cassazione’, que é a cúpula do Poder Judiciário da Itália, marcou julgamento para o próximo dia 12 de julho de um processo que interessa a milhões de brasileiros descendentes de italianos. Na ocasião, os juízes da ‘Suprema Corte’ irão decidir sobre a tese utilizada pela ‘Avvocatura dello Stato’ – advogado da parte contrária, o Ministero dell’Interno italiano – da chamada Grande Naturalização decretada pelo Governo Provisório brasileiro em 1889, quando o país se chamava Estados Unidos do Brasil.

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O decreto nº 58, de 14 de dezembro de 1889, estabeleceu que todos os estrangeiros residentes no Brasil na data de 15 de novembro de 1889 “são considerados brasileiros”, salvo declaração pessoal em contrário feita no prazo de seis meses. É esse decreto que está sendo usado em tribunais na Itália, pela Avv dello Stato, para tentar bloquear pedidos de cidadania de um grande número de brasileiros descendentes de italianos.

Teor do decreto da Grande Naturalização, de 1889.
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Embora grande parte de advogados que atuam na questão de cidadania italiana e de juristas considere que a tese da Grande Naturalização será derrubada, a hipótese de decisão favorável à ‘Avvocatura dello Stato’ traz preocupação. Caso isso ocorra, todos os brasileiros descendentes de italianos que residiam no Brasil em 15 de novembro de 1889 não teriam direito ao reconhecimento da cidadania italiana.

De forma simplificada, pela tese da ‘Avvocatura dello Stato’, qualquer italiano (ou estrangeiro) que tenha passado pela Grande Naturalização é brasileiro, o que impediria o mesmo de transmitir o jus sanguinis para seus descendentes. Isso se dá, de acordo com a tese, porque a Itália somente passou a reconhecer a dupla cidadania a partir de 01 de julho 1912, ou seja, não era possível ter dupla cidadania em 1889.

Não há número exato de quantos ítalo-descendentes seriam atingidos no Brasil caso ocorra uma decisão desfavorável da ‘Corte di Cassazione’, mas há estimativa de que esse contingente pode chegar a 7 milhões de pessoas. Os dados sobre descendentes de italianos são difusos. Em 2021, na comemoração do Dia do Imigrante Italiano, a Embaixada da Itália no Brasil divulgou que os ítalos-brasileiros somavam cerca de 32 milhões de indivíduos. Vale observar que a maioria desses não se enquadra no decreto da Grande Naturalização.

Corte de Cassação, em Roma.| Foto: Wikimedia Commons

A advogada ítalo-brasileira Marina Cestaro, que mora atualmente em Roma e atua em processos de cidadania de ítalo-descendentes, diz que não é possível fazer previsões de qual será a decisão da Corte di Cassazione.

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“Ainda que o assunto referente à Grande Naturalização já tenha sido julgado em 1907 pela Corte de Cassação em Nápoles e apesar de existirem julgados recentes na Corte de Apelo em Roma rejeitando a tese da Grande Naturalização, neste momento não se pode prever qual será a decisão da Corte de Cassação (órgão máximo jurisdicional na Itália) a respeito da Grande Naturalização. Entretanto, a questão é de suma importância visto que algumas audiências na Corte de Apelo de Roma têm sido adiadas para aguardar o resultado da decisão deste julgamento da Corte de Cassação, inclusive o próprio Ministero dell'Interno Italiano expediu a circular n. 6497 de 06 outubro de 2021, que orienta a rede consular italiana no exterior e os comuni italianos a aguardar a decisão que será proferida no julgamento da Corte de Cassação”, explica.

Um julgamento a ser pronunciado em seção unida da Corte de Cassação detém máxima importância no sistema jurídico italiano, de modo que tende a ser seguido pelas instâncias inferiores do Poder Judiciário italiano.

Marina Cestaro, advogada que atua em processos de cidadania de ítalo-descendentes.

A advogada ressalva que a decisão da Corte produz efeitos apenas entre as partes envolvidas na causa (inter partes), e não para todos (erga omnes), mas diz que tem grande importância no sistema jurídico italiano. “Embora não tenha efeitos contra todos, tampouco vinculantes, como têm algumas decisões do STF brasileiro, um julgamento a ser pronunciado em seção unida da Corte de Cassação detém máxima importância no sistema jurídico italiano, de modo que tende a ser seguido pelas instâncias inferiores do Poder Judiciário italiano, impactando em todos os demais casos concretos pendentes de julgamento nas cortes territoriais italianas”, observa.

Processos em cortes locais

Além da questão da Grande Naturalização, que irá a julgamento na próxima semana, desde o último dia 22 de junho de 2022 os novos pedidos de cidadania italiana jus sanguinis via judicial, de origem paterna (fila legal dos consulados) ou materna, passaram a ser analisados pelas cortes locais, da região de origem do ancestral italiano. Com isso, os pedidos de reconhecimento da cidadania italiana via judicial deixaram de ser centralizados no Tribunal de Roma.

A mudança atende o que foi estabelecido na reforma no Código do Processo Civil, aprovada em novembro de 2021 pelo Parlamento Italiano. A medida não atingiu os pedidos protocolados antes da data de 22 de junho de 2022, ou seja, os processos anteriores seguem no Tribunal de Roma.

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Segundo a advogada Marina Cestaro, ainda que o Tribunal de Roma seja o tribunal com seção e juízes especializados na matéria, a única mudança é o deslocamento da competência para julgar a ação, que até 22 de junho era de competência exclusiva no Tribunal de Roma e a partir daquela data é residual.

“O ajuizamento da ação continuará sendo online, o rito do processo continuará sendo o sumário, as provas continuarão a ser documentais. É um processo de reconhecimento pela via judicial em que a reconstrução dos fatos se faz por meio de provas documentais, portanto é dever da parte interessada fazer com que o juiz entenda a reconstrução da sua linha genealógica”, explica.

A advogada faz questão de ressaltar que a documentação probatória fornecida é obrigação (ônus) da parte. “Se o documento fornecido para provar o direito contém erro de sobrenome, de digitação do local, de data, aportuguesamento de nomes, é dever da parte comprovar que, por exemplo, aquele indivíduo com o nome de José Roci, casado no Brasil, é o mesmo indivíduo nascido e registrado na Itália com o nome de Giuseppe Rossi. Entenda que a prova é sempre (sempre foi, sempre é e sempre será) dever da parte interessada. Até porque, por princípio de direito, cabe a quem alega o ônus da prova (não ao juiz)”, complementa.

Folheto promocional da companhia La Veloce, que modernizou o transporte de migrantes italianos no final do século 19 e início do século 20.

Outro ponto importante a observar, segundo Marina Cestaro, é que a ação de reconhecimento de cidadania italiana se inicia no tribunal, perante o juiz, e é executada nos comuni. “Após a sentença transitar em julgado (passado o tempo para as partes recorrerem da sentença), há o envio da documentação da parte à cidade de proveniência do ancestral italiano para que, ali, junto ao oficial do registro civil, seja efetuado o registro da pessoa. Talvez a intenção do legislador italiano para essa mudança se concentrasse neste segundo momento, a saber, o da transcrição dos documentos (poder judiciário/tribunal e poder executivo/município na mesma região). O legislador, contudo, não deu atenção ao fato de que a maioria dos emigrados italianos vem de regiões específicas: Veneto, Piemonte, Campania, Friuli-Venezia Giulia, Abruzzo, Molise. Ou seja, se antes a queixa no Tribunal de Roma era "engarrafamento" de ações devido à alta procura pelo reconhecimento pela via judicial, agora, em alguns tribunais, esse "engarrafamento" existirá também. Por fim, a pessoa tem que ter confiança no trabalho do advogado escolhido. E nós, como sociedade, confiança no trabalho do magistrado. Se, em algum momento do passado, o magistrado atuante no Tribunal de Roma se especializou na matéria, o mesmo irá acontecer com os juízes de mérito das cortes territoriais italianas”, pondera.

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Cidadania pelo ‘direito de escola’

Outra mudança importante em curso relacionada à cidadania italiana trata dos filhos de imigrantes nascidos no país ou que tenham chegado antes de completar 12 anos de idade. O texto foi aprovado no último dia 28 de junho pela Comissão de Constituição da Câmara dos Deputados e encaminhado para discussão no plenário, mas ainda está longe de se tornar definitivo.

A proposta estabelece que "o menor de idade estrangeiro nascido na Itália ou que tenha chegado até o 12º aniversário" tem direito à cidadania italiana, desde que tenha morado "legalmente e sem interrupções" no país e "frequentado regularmente, por pelo menos cinco anos, um ou mais ciclos escolares em território nacional".

Batizado de jus scholae ("direito de escola", em tradução livre), o projeto beneficiaria cerca de 1 milhão de crianças e adolescentes, segundo estimativas não oficiais.