Onda que levou à derrocada de partidos que sustentaram o Estado de bem-estar social na Europa abala governos com a mesma inspiração em outros continentes
Logo após a confirmação da vitória de Jair Bolsonaro (PSL) na eleição presidencial no Brasil, o futuro ministro da Fazenda, Paulo Guedes, foi taxativo ao afirmar que o novo governo vai enterrar a social-democracia no país. “Esse modelo social-democrata é ruim, somos prisioneiros do baixo crescimento, temos impostos altos, temos juros muito altos, comercializamos com poucos países”, declarou.
A fala de Guedes, um ultraliberal formado na escola de Chicago, ecoa o crescimento na América Latina da onda política – conservadora nos costumes e liberal na economia – que há anos vem provocando mudanças na Europa, o berço da implementação de um modelo de governar que priorizou o chamado Estado de bem-estar social.
Nos últimos 30 anos, grande parte dos países da América do Sul passou por governos que apostaram nas chamadas políticas de seguridade social e redução das desigualdades. Com tonalidades diferentes, a esquerda predominou do extremo sul (Argentina e Chile) ao extremo norte (Venezuela). A exceção foi a Colômbia, que teve governos liberais e conservadores em praticamente toda a sua história republicana.
O ciclo de governos considerados social-democratas na América do Sul teve seu auge nos 2000. A partir da segunda metade da década atual o modelo começou a desmoronar. O Chile foi o último país da região a superar a ditadura militar e o primeiro a derrubar a centro-esquerda após mais de 20 anos de governos da Concertación Democrática, uma coalizão de partidos de centro-esquerda fromada por social-democratas e democratas-cristãos. Em 2010, o multimilionário Sebastián Piñera assumiu a presidência, mas quatro anos depois os liberais foram derrotados e a socialista Michelle Bachelet voltou ao poder. No ano passado, Piñera deu a volta por cima e foi eleito para seu segundo mandato.
A Argentina vinha sendo governada por peronistas e socialistas (Fernando de la Rúa) desde o fim da ditadura militar, em 1983. Em 2015 o empresário Mauricio Macri acabou com o domínio de 12 anos consecutivos da família Kirchner, alinhada com o peronismo. Três anos depois da mudança, a Argentina enfrenta forte crise econômica e a possibilidade de os peronistas retornarem ao poder em 2019 é grande, segundo analistas.
A vitória de Bolsonaro no último dia 28 de outubro coloca fim a um período de mais de 20 anos de comando da centro-esquerda no Brasil. Foram oito anos do social-democrata Fernando Henrique Cardoso, oito anos do petista Lula e mais seis anos de Dilma Rousseff, também do PT. Com o impeachment, Michel Temer (MDB) deu um rumo mais à direita ao governo, mas manteve muitas das políticas de centro-esquerda da antecessora.
Causas comuns e específicas
Os motivos que levaram à queda da centro-esquerda em vários países da América do Sul têm em comum, na avaliação de analistas, a incapacidade desses governos – após um período de conquistas de direitos – de garantir serviços públicos de qualidade prometidos. Os problemas na economia, com alto desemprego e baixo crescimento também é um fator que afetou mais fortemente Brasil e Argentina e, como menos intensidade, o Chile. Mas há também questões distintas, como os escândalos de corrupção e morais.
“Parte da ascensão da direita se dá pelo fato de que há uma avaliação muito negativa dos governos de esquerda, que não estavam dando conta de serviços de qualidade. Quem mais está descontente é a classe média tradicional, que paga impostos e não tem o retorno em serviços de qualidade, tem que pagar educação, tem que pagar serviços privados de saúde”, avalia a cientista social Maria do Socorro Braga, professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Para a pesquisadora, a rejeição aos políticos tradicionais, tanto na América Latina quanto na Europa e nos Estados Unidos, contribui para as mudanças que estão ocorrendo. Ela cita ainda outras questões, como a corrupção e a insegurança, que afetam mais especificamente o Brasil e, no caso da Europa e EUA, a imigração (veja entrevista).
O também cientista político Marcio Carlomagno observa que o fenômeno da ascensão da direita tem atingido não só os países onde a social-democracia havia se consolidado, mas também países marcados pelo liberalismo econômico, como os Estados Unidos.
“A ascensão dos políticos de direita pode ser atribuída a um conjunto de fatores, não a um único elemento. Há a questão da onda, que surge num país e contamina outros. Nos anos 2000 houve uma onda de esquerda, sobretudo na América Latina e em outras partes do mundo. Outro ponto é o aspecto cíclico: em determinado momento a esquerda cresce e, em outro, há o crescimento dos governos de direta. Por exemplo, nos anos 1980 foi marcado no mundo todo por governos de direita, teve Ronald Reagan nos EUA, a Margaret Tatcher no Reino Unido e muitos outros. O Fernando Collor ganhou no Brasil. Então são movimentos cíclicos e isso ajuda a entender o momento em que estamos vivendo, marcado pela ascensão de políticos classificados como populistas de direita. Trump e Bolsonaro são populistas, enquanto que nos anos 80, Reagan e Tatcher eram governos de direita mais ideologicamente consistentes no aspecto do liberalismo econômico. Os políticos da nova onda de direita são pautados na rejeição aos políticos tradicionais, embora alguns deles estão na política há muito tempo, mas se apresentam como candidatos antissistema. Eles estão surfando na onda da rejeição aos políticos profissionais”, resume Carlomagno.
A exemplo da professora Maria do Socorro Braga, o pesquisador aponta o fracasso da centro-esquerda em implementar determinadas políticas com fator favorável à direita. “Com relação à social-democracia, me parece que a queda se dá pelas promessas não cumpridas. No momento em que o Estado gera uma expectativa, promete aos seus cidadãos uma educação de qualidade para todos, um sistema de saúde universal, e não consegue cumprir esses objetivos, gera uma insatisfação nos cidadãos. E essa insatisfação acaba resultando na ascensão de políticos de direita”, diz.
Declínio dos governos ligados ao Estado de bem-estar social na Europa
A cada eleição, partidos social-democratas têm perdido votos e relevância no continente europeu, berço do Estado de bem-estar social.
Na França, o tradicional Partido Socialista, de centro-esquerda, e os conservadores da União dos Democratas pela República (UDR) e União por um Movimento Popular (UMP) ficaram de fora do segundo turno das eleições presidenciais de 2017. A decisão ficou entre a ultradireitista Marine Le Pen e Emmanuel Macron, um centrista que se apresentou como terceira e saiu vitorioso.
Na Itália, os grandes vencedores das eleições deste ano foram os populistas de direita Liga do Norte e Movimento 5 Estrelas, fundado em 2009 pelo palhaço Beppe Grillo. O Partido Democrático (centro-esquerda) e Força Itália (liberalismo tradicional) ficaram de fora do governo.
Na Espanha, a crise decorrente das políticas de austeridade levou ao surgimento meteórico do Podemos, um partido mais à esquerda do socialista PSOE. A nova força política abalou também o liberal Partido Popular.
Na Grécia a extrema-esquerda foi mais longe. Em meio à crise fiscal que afundou o país após 2008, o líder esquerdista Aléxis Tsípras, da Coligação da Esquerda Radical, derrubou os tradicionais socialistas do PASOK juntamente com os conservadores da Nova Democracia e tornou-se primeiro-ministro.
O Partido do Trabalho (PvdA) da Holanda, que ocupou o cargo de primeiro-ministro por três vezes no pós-Guerra, obteve o pior resultado nas urnas de seus 70 anos de história nas eleições de 2017: 5,7%. O partido despencou de segundo para sétimo mais votado. Em contrapartida houve ascensão do partido do populista de direita Geert Wilders, o mais votado.
Símbolo para os social-democratas europeus, a Suécia também presencia um recuo da centro-esquerda. Os social-democratas terminaram na frente em todas as eleições desde 1917, apesar de nem sempre terem indicado o primeiro-ministro. Agora em 2018 conseguiram manter a hegemonia, mas presenciaram o avanço do ultradireitista Democratas da Suécia (SD), que obteve 17,5% dos votos e ficou em terceiro lugar.
Entrevista
Maria do Socorro Braga, cientista política e professora da Universidade Federal de São Carlos (UFScar)
A pesquisadora Maria do Socorro Braga é uma estudiosa da chamada “onda rosa”, expressão comumente usada para identificar a forte influência da esquerda na América Latina nos anos 2000. Foi a partir do final da década de 1990 que líderes de partidos reformistas de esquerda, como Lula (no Brasil), Tabaré Vázquez (no Uruguai), Ricardo Lagos (Chile), Néstor Kirchner (Argentina), Hugo Chávez (na Venezuela) e muitos outros chegaram ao poder.
Para a professora, a ascensão da direita e o recuou da esquerda na região nos últimos anos se dá, principalmente, pela incapacidade dos governos da chamada onda rosa de entregarem à população o que prometeram.
A queda de governos com viés social-democrata na América do Sul segue o que aconteceu na Europa?
Há uma onda de setores conservadores de volta a diversos países em todo o mundo. Já ocorreu algo similar, com o chamado neoliberalismo, no final dos anos de 1980. Depois disso nós tivemos o que se pode chamar de onda rosa, com governos de esquerda de diferentes tonalidades. Agora temos essa onda de direita de diferentes matizes. Em grande parte dos países a esquerda ascendeu devido a um grande descontentamento da população em relação às políticas neoliberais, especialmente às políticas econômicas, do aumento da desigualdade social e do fracasso em políticas básicas, como educação, e do controle do mercado sobre vários setores sociais importantes.
Como analisar a derrocada agora da onda rosa?
Neste momento há uma avaliação muito negativa dos governos de esquerda, que não estavam dando conta de serviços de qualidade. Quem mais está descontente é a classe média tradicional, que paga impostos e não tem o retorno em serviços de qualidade, tem que pagar educação, tem que pagar serviços privados de saúde.
Mas existem outros fatores além dos econômicos…
As questões de segurança e corrupção são comuuns a quase todos os países. Um alto grau de violência e a dificuldade do Estado de coibir essa violência contra a pessoa física é muito comum aos países da América do Sul. Tem também a questão com valores morais, e isso ajuda a explicar o sucesso de Jair Bolsonaro, que consegue dialogar com grande parcela conservadora da população por meio de uma narrativa em defesa da família tradicional, de dogmas cristãos.
E quais são as diferenças dos problemas entre os países?
Há muitas similaridades, mas tem fenômenos distintos de uma país para outro. A questão da imigração é comum na Europa e nos Estados Unidos, um problema que ajudou políticos como Trump e Le Pen (na França).
Como explicar a alta rejeição aos partidos e políticos tradicionais?
A ideia é que a classe política não está dando conta mais das questões econômicas, que são consequência dos problemas colocados pelo próprio capitalismo. Por isso a social-democracia e mesmo os partidos conservadores e liberais tradicionais, pró-mercado, acabaram sendo atingidos frontalmente pela crise de 2008. Naquele momento surgiram políticos de extrema-direita e novos partidos de esquerda (Le Pen na França, Podemos na Espanha, Alexis Tsipras na Grécia). A esses elementos, aqui no Brasil se junta o problema da corrupção combinada com uma forte crise econômica. As dificuldades do governo Dilma de dar conta aos problemas econômicos, mais os escândalos de corrupção e as chamadas pautas-bomba aprovadas no Congresso ajudaram no descrédito das classes políticas tradicionais, tanto que o PSDB é o partido mais atingido.