Uma década antes da assinatura do Estatuto de Roma – tratado que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional (TPI) –, representantes de vários países começaram a debater a possibilidade de incluir as agressões em larga escala ao meio ambiente como um dos crimes previstos no documento. Para surpresa de muitos, em 1996, dois antes da finalização do tratado, a proposta foi retirada do texto, apesar de 50 dos 54 países que participaram das discussões terem aprovado a sua inclusão.
Desde o início, os debatedores usavam a expressão ecocídio – termo que teve origem no uso de desfolhantes durante a Guerra do Vietnã (1959 a 1975) – para designar a modalidade de delinquência ecológica que provoque extermínio de espécies de um ecossistema ou a sobre-exploração de recursos não renováveis. Pela proposta original, ecocídio seria um crime autônomo no estatuto, no mesmo patamar de genocídio, crime contra a humanidade, crime de guerra e crime de agressão.
Com a formalização do Estatuto de Roma sem que os grandes danos ambientais fossem contemplados no documento, o tema ficou restrito às legislações nacionais de cada país. Mas o movimento pela criminalização internacional dos crimes ao meio ambiente ganhou força e visibilidade em todo o mundo.
Os defensores da penalização internacional das agressões ambientais que violam os valores da vida não conseguiram até hoje mudar o Estatuto de Roma – apesar de o debate continuar vivo –, mas há dois anos o TPI publicou uma orientação que reconhece ecocídio como crime contra a humanidade.
No novo documento, a Procuradoria do TPI declara que o tribunal passará a interpretar os crimes contra a humanidade de maneira mais ampla, para incluir também crimes contra o meio ambiente que destruam as condições de existência de uma população, como no caso de desmatamento, mineração irresponsável, grilagem de terras e exploração ilícita de recursos naturais.
Com o novo dispositivo, em caso de ecocídio comprovado, as pessoas atingidas terão a possibilidade de entrar com um recurso internacional no TPI para obrigar os autores do crime – chefes de Estado, autoridades públicas, empresas ou executivos – a pagar por danos morais ou econômicos.
Interpretações
Logo após a publicação do TPI, uma pergunta que veio à tona é se os Estados signatários do Estatuto de Roma são obrigados a acatar esta nova interpretação. Os professores de Direito da Universidade Federal da Bahia Heron José de Santana Gordilho e Fernanda Ravazzano elaboraram um extenso artigo para analisar as repercussões geradas pela decisão aos países signatários.
Na análise, os autores observam que a competência do TPI é complementar às jurisdições penais nacionais dos países signatários, sendo admitida apenas para os delitos sem previsão nas legislações internas dos Estados-membros. Gordilho e Ravazzano concluem que dentre os delitos elencados no Estatuto de Roma, o ecocídio pode ser configurado como espécie de crime contra a humanidade, mas ressaltam a necessidade de “aprovação de uma Emenda ao Estatuto de Roma para incluir o crime de ecocídio dentre os crimes contra a humanidade, permitindo punibilidade de ações que representem significativos danos aos ecossistemas naturais”.
Para a advogada Luciana Simmonds de Almeida, que atua na área ambiental do escritório Trigueiro Fontes Advogados, a partir do novo entendimento, os casos de ecocídio cometidos em países signatários do Estatuto de Roma, incluindo o Brasil, poderão ser julgados pelo TPI como crimes contra a humanidade. No entanto, ela também faz ressalvas e chama atenção para a soberania de cada nação. “O TPI entra para julgar pessoas a partir do momento em que o país onde ocorreu o crime se quedou inerte ou no caso em que se consegue provar que o julgamento com base nas legislações nacionais não cumpriu com os requisitos formalmente. Então, o TPI acaba sendo um órgão subsidiário. Uma denúncia internacional, por exemplo, de um caso em que está sendo tratado na justiça brasileira e que ainda não teve uma decisão final, provavelmente o TPI vai negar competência”, explica.
Brasil no radar
Ao mesmo tempo que uma série de ações são desenvolvidas na tentativa de alterar o Estatuto de Roma, os defensores da criminalização internacional dos crimes ambientais que resultem em extinção de espécies, acidificação dos oceanos, sobre exploração de recursos naturais não renováveis e desmatamento massivo buscam chamar a atenção da comunidade internacional para o consideram situação alarmante do planeta.
Os recentes rompimentos de barragens de rejeitos de mineração, em Minas Gerais, não ficaram fora do foco. Para muitos especialistas e advogados que buscam uma dura penalização pelos desastres das barragens de Brumadinho, em fevereiro deste ano, e Mariana, há pouco mais de três anos, o Brasil poderá ser denunciado ao TPI caso as decisões da justiça brasileira sejam falhas. A extensão geográfica, a amplitude da população afetada, o tamanho da destruição ambiental e os impactos nas vidas pessoas seriam elementos suficientes, na visão desses atores, para levar o caso para a esfera internacional. Há também questionamentos internacionais sobre o aumento do desmatamento na Amazônia.
O Brasil passou oficialmente a ser signatário do Estatuto de Roma em 2002, quando o Congresso Nacional aprovou o texto. Decreto assinado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, datado de 25 de setembro de 2002, diz que o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional “será executado e cumprido inteiramente” pelo país.
No último dia 25 de junho, a Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que tipifica como ecocídio o crime quando uma pessoa causa um desastre ambiental com destruição significativa da flora ou com elevado número de mortes de animais. Pelo texto, a pena será de reclusão de quatro a 12 anos e multa. Se o crime for culposo, ou seja, sem intenção, a pena reduz de 1 a 3 anos. Já as multas ambientais podem chegar a R$ 1 bilhão, dependendo da categoria e da gravidade do desastre. Atualmente, o máximo que pode ser pago é de R$ 50 milhões. A proposta ainda precisa ser aprovada no Senado.
Crimes previstos no Estatuto de Roma
Tratado de 17 de julho de 1998 estabeleceu o Tribunal Penal Internacional (TPI) com a competência para julgar os seguintes crimes:
Crime de genocídio
Qualquer ato praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal.
Crimes contra a humanidade
Ato cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil.
Crimes de Guerra
Violação do direito internacional durante guerras, estabelecido por acordos internacionais, incluindo as Convenções de Genebra. Ataques a objetivos (civis, prisioneiros de guerra e feridos) não-militares são caracterizados como crime de guerra.
Crimes de agressão
Uso de força armada por um Estado contra a soberania, integridade territorial ou independência política de outro país, ou qualquer outra agressão que vá contra a Carta das Nações Unidas.
Polly Higgins simboliza movimento pela proteção da Terra
A escocesa Polly Higgins construiu uma carreira bem-sucedida como advogada em Londres, onde atuava em direito corporativo e trabalhista. Depois de passar longo tempo de sua vida cuidando de processos, há cerca de 15 anos ela se perguntou: “Como podemos criar um dever legal para cuidar da Terra”. Foi a partir desse questionamento que Higgins decidiu abandonar os tribunais e assumir um grande projeto em defesa do planeta.
Após exame das legislações existentes sobre crimes ambientais, Higgins assumiu uma campanha para estabelecer o termo ecocídio com crime internacional. Por tal crime pessoas de responsabilidade superior (tais como chefes de governo, ministros e executivos de empresas) tornariam passíveis de processo penal internacional.
Em 2010, Higgins apresentou uma proposta à Comissão de Direito da ONU, que definia ecocídio como "perda extensiva, dano ou destruição de ecossistemas de um determinado território, de tal modo que o gozo pacífico pelos habitantes foi (ou será no futuro) severamente diminuído ”. No ano seguinte, sua atuação ficou em evidência, depois que um julgamento simulado de ecocídio na Suprema Corte do Reino Unido demonstrou a viabilidade jurídica de tal crime.
"A Terra necessita de uma lei que a proteja."
Polly Higgins, ativista que liderou o movimento pela transformação de ecocídio em crime internacional.
O primeiro livro de Polly, “Erradicando o Ecocídio: Leis e Governança para Prevenir a Destruição do Nosso Planeta”, de 2010, tornou-se um marco no debate sobre preservação ambiental. Para ela, o termo ecocídio tipifica praticamente três crimes: contra o mundo natural vivo – a perda, dano ou destruição do ecossistema –, contra a Terra, não apenas contra os humanos, e climático, decorrente, por exemplo, de determinadas atividades industriais e de exploração ambiental.
O rompimento da Barragem da Vale em Brumadinho (MG), três anos após a tragédia de Mariana, outra barragem de rejeitos de mineração, levou Higgins a questionar se episódios como esses, de “desrespeito imprudente pelas consequências” das atividades perigosas, não poderiam ser tratados como ecocídio.
Polly Higgins morreu no dia 21 de abril deste ano, aos 50 anos de idade, vítima de câncer. Ela não chegou a ver sua proposta de estabelecer ecocídio como o quinto crime internacional contra a paz, no mesmo patamar de genocídio, de crime contra a humanidade, de crime de guerra e de crime de agressão. Mas presenciou a decisão do Tribunal Penal Internacional (TPI) que admite ecocídio como um crime contra a humanidade.
Um de seus legados, a organização sem fins lucrativos Ecological Defense Integrity, criada em 2017, dá suporte a um grande número de advogados, especialistas e juízes de todo o mundo na busca de soluções para conter os danos ao meio ambiente. O Movimento “Earth Protectors” (Protetores da Terra), criado após sua morte, já conta com mais de 9 mil apoiadores espalhados por praticamente todos os países.