Nesta semana, o presidente dos EUA, Joe Biden, ordenou ao Pentágono definir quando a vacina contra Covid-19 entrará na lista de imunizantes obrigatórios para membros das Forças Armadas. Na França, o governo decidiu exigir apresentação de um ‘passaporte sanitário’ para a entrada em locais como cinemas e restaurantes e obrigar profissionais da saúde a se vacinar. Empresas em todo o mundo, a exemplo da Disney, Facebook, Google, Walmart, vêm exigindo que seus funcionários tomem vacina. Na Europa, o Parlamento Europeu aprovou um projeto do certificado digital e vários países instituíram um “passaporte da vacina”.
As restrições e exigências impostas por autoridades em todo o mundo em decorrência da pandemia de coronavírus colocam em debate a questão da liberdade individual e o direito coletivo. Manifestantes antivacina têm protestado em vários países sob o argumento de que medidas restritivas – como a criação do ‘passaporte da vacina’ e exigência de empresas e órgãos públicos para que seus funcionários tomem a vacina contra Covid-19 – ferem um princípio fundamental: a liberdade.
Do lado da maioria dos governos e dos defensores da vacinação, a exigência de certificado (passaporte) não obriga as pessoas a se vacinar, ou seja, fica mantido o direito à liberdade de escolha. O que ocorre nesses casos é a perda do direito de frequentar determinados ambientes se a pessoa optar por não se vacinar. A restrição teria como objetivo proteger o coletivo diante de um risco grave. Quanto à obrigatoriedade imposta a alguns grupos específicos, como integrantes das Forças Armadas e profissionais de saúde, o argumento é que deve prevalecer o interesse à saúde pública e à segurança diante da liberdade individual.
Os defensores da vacinação também apresentam como justificativa as diversas decisões constitucionais com o entendimento de que, nos casos que se apresenta a necessidade de preservar a saúde pública, a exigência de vacinação pode se sobrepor à liberdade individual. Esse entendimento não é de agora. Em 1905, no julgamento conhecido como ‘Jacobson v. Massachusetts , 197 US 11’, a Suprema Corte dos EUA decidiu a favor de as autoridades dos estados poderem fazer cumprir as leis de vacinação obrigatória.
O caso Jacobson merece ser citado pelo fato de constituir um dos marcos da questão das restrições à liberdade individual. Na decisão, o Tribunal expôs a visão de que a liberdade pessoal não é absoluta, mas também reconheceu a importância da liberdade individual e como ela limita o poder do Estado.
No início do século 20, epidemias de doenças infecciosas – como a varíola – continuavam sendo uma ameaça recorrente. Na época, um estatuto de Massachusetts concedeu aos conselhos de saúde da cidade a autoridade para exigir a vacinação "quando necessário para a saúde ou segurança pública". Henning Jacobson recusou a vacinação, alegando que ele e seu filho tiveram reações ruins às vacinações anteriores.
Diante do impasse, o Supremo Tribunal Judicial de Massachusetts considerou que ninguém poderia ser forçado a ser vacinado e que as autoridades deveriam pensar de outra forma, mas reconheceu que a cidade de Cambridge poderia multar os residentes que se recusassem a receber injeções de varíola. Com a decisão do Tribunal, Jacobson foi multado pelas autoridades. Inconformado, ele apelou para a Suprema Corte.
A Corte máxima dos EUA sustentou o poder do estado Massachusetts de conceder ao conselho de saúde autoridade para ordenar um programa geral de vacinação durante uma epidemia.
O caso Jacobson foi considerado raro na época, considerando que a questão era se o Estado havia ultrapassado sua própria autoridade e se a esfera de liberdade pessoal protegida pela Constituição incluía o direito de recusar a vacinação.
O ministro John Marshall Harlan formulou a questão perante a Corte e defendeu que a Constituição dos EUA protege a liberdade individual e que a liberdade não é "um direito absoluto de cada pessoa a ser, em todos os momentos e em todas as circunstâncias, totalmente livre de restrições".
“Há, é claro, uma esfera dentro da qual o indivíduo pode afirmar a supremacia de sua própria vontade e disputar legitimamente a autoridade de qualquer governo (...) Mas é igualmente verdade que em toda sociedade bem ordenada encarregada do dever de conservar a segurança de seus membros, os direitos do indivíduo em relação à sua liberdade podem, às vezes, sob a pressão de grandes perigos, estar sujeitos a tal restrição, a ser aplicada por regulamentos razoáveis, como a segurança do público em geral pode exigir.”
John Marshall Harlan, em decisão da Suprema Corte dos EUA, em 1905.
A decisão da Suprema Corte, embora tenha sido favorável à sustentação do ministro Harlan e sustentado limitações à liberdade pessoal, traz ressalvas que foram ampliadas posteriormente. Por exemplo, as autoridades não podem agir de forma irracional, de maneira arbitrária ou opressiva. Outro exemplo: a exigência não deve ser entendida como aplicável a qualquer pessoa que possa demonstrar, com base em atestados médicos, que a vacinação prejudicaria sua saúde.
A partir da segunda metade do século 20, as legislações e constituições de vários países avançaram rumo à garantia dos direitos de liberdade, protegendo os indivíduos dos abusos das autoridades governamentais, mas também assegurando a proteção da coletividade frente a ameaças individuais. Na questão da vacinação, apesar de legislações de muitos países autorizarem a obrigatoriedade, o entendimento é que ninguém pode ser forçado a tomar vacina. O poder público, no entanto, pode impor restrições e sanções a quem recusar a imunização, considerando que um indivíduo não tem direito de colocar em risco outras pessoas. Por esse entendimento se justificam as limitações de acesso a determinados locais e ingresso em países estrangeiros, como vêm sendo feito.
Quanto à postura de empresas que estão exigindo vacinação de seus funcionários, a polêmica também é grande e há fortes divergências de posicionamentos, mas em vários países têm prevalecido a tese de que as companhias privadas podem impor a vacinação e demitir empregados que se recusarem, respeitando razões religiosas ou outros motivos, como gravidez, além de problemas de saúde.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a vacinação compulsória contra a Covid-19 é constitucional e que sanções podem ser estabelecidas contra quem não se imunizar. Mas há divergência quando o tema é o direito de as empresas demitirem funcionários que recusarem a vacina.
Advogados que defendem o direito de a empresa fazer demissão dizem que as companhias têm responsabilidade em manter o ambiente de trabalho saudável e seguro, com base na Constituição, que fixa como direito dos trabalhadores a "redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança". Outro argumento é que o empregado que se recusar a tomar a vacina estará colocando a saúde de todos os colegas em risco.
De outro lado, há os advogados que entendem que a Constituição estabelece que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei, e que para poder demitir por justa causa um funcionário que recusar o imunizante teria de haver uma lei específica prevendo a restrição ao emprego. Para esses advogados, as empresas também não podem impor a vacinação.
Nos EUA, a Tyson Foods fez um comunicado a seus 120 mil funcionários, na última terça-feira (03), de que eles precisam ser vacinados até 1º de novembro como uma condição para manter o emprego. E a Microsoft, que tem mais de 100 mil empregados em território norte-americano, disse que exigirá prova de vacinação para todos os funcionários, fornecedores e convidados para ter acesso aos seus escritórios. Na mesma linha foram Google e Disney, enquanto algumas companhias, como Walmart, Lyft e Uber, adotaram exigência de vacina para trabalhadores de áreas administrativas e em cargos gerenciais, mas não para trabalhadores da linha de frente.
A exigência de vacina enfrenta questionamento de vários sindicatos de trabalhadores, que querem total aprovação da Food and Drug Administration às vacinas contra Covid-19 para apoiar a obrigatoriedade. Hoje, os imunizantes estão sendo administrados em caráter de emergência. Há críticas também de especialistas sobre a divisão entre os trabalhadores que serão obrigados a se vacinar e os que ficarão desprotegidos.
No ano passado, a Comissão de Oportunidades Iguais de Emprego dos EUA disse que os empregadores poderiam exigir imunização, embora as empresas possam enfrentar processos judiciais.
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