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Na terra de Louis Pasteur – um dos fundadores da microbiologia, criador da vacina contra a raiva e inventor do processo de pasteurização dos alimentos –, o governo enfrenta dificuldades para acelerar o processo de vacinação contra Covid-19. Dados do Ministério da Saúde francês mostram que até o último dia 14 de março o país havia vacinado 7,67% da população com a primeira dose e apenas 3,32% com as duas doses.
Os problemas na campanha de vacinação contra Covid-19 na França não são decorrentes exclusivamente das dificuldades em obter imunizantes, como ocorre no Brasil. Entre os desafios das autoridades sanitárias para acelerar a imunização está a desconfiança de muitos franceses em relação às vacinas em geral e, no caso específico da Covid-19, à nova geração de imunizantes, com base em RNA mensageiro (mRNA). As vacinas da Pfizer e da Moderna, ambas aplicadas na França, foram criadas a partir dessa nova tecnologia.
Pesquisa realizada pela empresa britânica Kantar Public, em fevereiro, mostra que mais de um terço (37%) dos franceses definitivamente ou provavelmente não vão tomar vacina, contra 23% na Alemanha e apenas 14% no Reino Unido. Esse índice de rejeição entre os franceses já foi maior, passando de 50%, mas caiu após a demonstração de eficácia de imunizantes contra Covid-19 e de campanhas a favor da vacinação.
O movimento contra vacinação em massa na França não é de hoje. Tem raízes no século XVIII, quando surgiram na Europa as primeiras lutas contra as leis de vacinação obrigatória. Mais recentemente, os franceses tiveram experiências que minaram as políticas de imunização no país. Alguns escândalos na saúde pública francesa e a disseminação de fatos não comprovados foram decisivos para aumentar a resistência.
No início dos anos de 1980, o uso de estoques de sangue contaminado pelo vírus da Aids em transfusões contagiou milhares de pessoas com a doença e abalou a confiança nas autoridades em um dos países mais desenvolvidos do mundo quando se trata de saúde e produção de medicamentos.
Em 2010 foi aberta uma investigação sobre o motivo que levou o governo francês a comprar uma quantidade excessiva de vacina contra o vírus H1N1. A França gastou US$ 1,2 bilhão (cerca de R$ 6,7 bilhões) e apenas 5 milhões de pessoas foram vacinados. Além da baixa procura, estudos mostraram que apenas uma dose era suficiente – e não duas como se imaginava.
Mas o fato que mais tem influenciado franceses ocorreu em 1998, quando o médico Andrew Wakefield apresentou uma pesquisa preliminar, publicada na conceituada revista Lancet, em que relacionou a vacina contra sarampo-caxumba-rubéola (MMR) ao autismo.
Mais tarde, após constatar fraude, a Lancet apagou a publicação e Wakefield perdeu registro de médico, além de ter sido condenado por má conduta profissional. O Conselho Geral de Medicina (GMC) considerou que Wakefield agiu de forma "desonesta", "enganosa" e "irresponsável" enquanto fazia uma pesquisa, mas o estrago já estava feito. O falso estudo havia sido divulgado por todo o mundo e municiou os ativistas contra as vacinas.
Há ainda um movimento internacional que cita, com frequência, trabalhos do professor Romain Gherardi, neurologista do hospital Henri Mondor, os quais abordam os riscos dos adjuvantes de alumínio em vacinas. Os sais de alumínio são utilizados na fabricação de dezenas de vacinas atualmente. Estudos de Ghérardi nos anos de 1990 descrevem que o uso de hidróxido de alumínio pode causar o desenvolvimento de miofascite macrofágica, uma doença muscular rara.
Em 2012, um grupo de manifestantes, liderados pela associação denominada E.3M. – que luta pelo fim do uso de sais de alumínio em vacinas –, fez uma greve de fome na praça da Bolsa, no centro de Paris, tendo conseguido um financiamento de 150 mil euros para a investigação sobre a toxicidade do alumínio na composição das vacinas.
De outro lado, a maioria da comunidade científica afirma que o alumínio é usado de forma segura nas vacinas desde a década de 1930 e que bilhões de pessoas já foram vacinadas com esse adjuvante. O alumínio nas vacinas é seguro, segundo estudos, porque a quantidade presente é muito baixa, sem riscos para a população.
Outro motivo de desconfiança de muitas pessoas está relacionado ao que o governo divulga. No início da pandemia o governo disse aos franceses que as máscaras faciais eram inúteis, depois propagou que apenas aqueles com sintomas precisavam de exames. Agora, parte da população questiona se pode confiar sobre o que o governo diz em relação às vacinas.
O historiador Laurent-Henri Vignaud, coautor do livro Antivax – Résistance aux vaccins du XVIIIe siècle à nos jours (Antivax – Resistência às vacinas desde o século 18 até os dias atuais, em tradução livre), avalia que houve um aumento na radicalização antivacina entre os franceses durante a pandemia do novo coronavírus.
Vignaud diferencia entre hesitação vacinal e militantes antivacina. O pesquisador traça os perfis históricos dos ‘antivaxxers’ na França. "Há um tipo de movimento religioso 'fatalista'. É algo como: Deus decidiu que você vai ficar doente e você não pode ir contra a vontade de Deus. Então você tem os argumentos pseudo-científicos: isto é, as pessoas que não acreditam que o vírus é perigoso. Você também tem a abordagem naturalista: você deve deixar a natureza fazer o seu trabalho. Depois, há outro argumento, político, que são as pessoas que realmente se posicionam contra o Estado ter o poder de forçar você a tomar algum tipo de medicamento”, explica.
Esse conjunto de fatores deixa o campo aberto para atuação de grupos que se apoiam em teorias da conspiração e de outros que se baseiam em erros de publicações sobre vacinas no passado. As teorias da conspiração da Big Pharma, por exemplo, alegam que a medicina em geral e a indústria farmacêutica, principalmente as grandes farmacêuticas, operam contra o interesse público e, com vistas somente ao lucro, para gerar dependência de medicamentos.
Um exemplo de teoria da conspiração está ligado à Moderna, que, segundo divulgam os militantes antivacina, supostamente “recebeu investimento da Merck há cerca de cinco anos e já estava fazendo pesquisas sobre uma vacina contra Convid-19 em 2015”, bem antes da pandemia.
Para especialistas, as autoridades sanitárias francesas só vencerão a resistência se ouvirem as pessoas e levarem em consideração as suas preocupações. Culturalmente, o país tem um longo histórico de debates sobre saúde pública, o que permite esclarecimentos, mas também abre espaço para questionamentos e dúvidas. Outro ponto importante é não deixar ideias falsas circularem sem resposta. É preciso que se esclareça todas as dúvidas, dando maior transparência nas ações das autoridades sanitárias.