| Foto: Divulgação/Forum Econômico Mundial/Ramzi Boudina
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Nos últimos meses, em meio à batalha de ideias desencadeada pelo novo coronavírus, multiplicaram-se as teses de globalistas e antiglobalistas sobre as possibilidades de a pandemia propiciar a construção de uma nova ordem mundial. Uma das teses que ganharam força entre os críticos da globalização alerta para o que consideram risco de fortalecimento das instituições internacionais e multilaterais em detrimento dos projetos nacionais e do nacionalismo.

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O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, em artigo publicado em seu blog, intitulado “Chegou o Comunavírus”, diz que o coronavírus faz despertar novamente para o pesadelo comunista. Ao analisar o livro Virus, do filósofo esloveno Slavoj Žižek, Araújo acusa um suposto ‘plano globalista-comunista’ com o intuito de usar a pandemia da covid-19 para implementar sua ideologia por meio de organismos internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Outros artigos publicados recentemente e discursos de líderes políticos antiglobalistas acusam defensores da globalização – como o primeiro-ministro britânico Gordon Brown, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o ex-juiz e filósofo do direito italiano Luigi Ferrajoli e o bilionário húngaro George Soros, entre outros – de utilizarem a crise desencadeada pela pandemia como pretexto para avançar em políticas de concentração de poder nas mãos de organizações internacionais.

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Esses ataques, identificados como vindos de representantes da direita, revelam que o antiglobalismo neste momento de pandemia está unindo polos extremos. No final do século 20 e nos primeiros anos do século 21, a luta contra a globalização era uma bandeira quase que exclusiva da esquerda. Era formada por organizações da sociedade civil como, por exemplo, Organizações Não Governamentais (ONGs), sindicatos, movimentos ambientalistas, grupos indígenas, entre outros e tinha como confluência o Forum Social Mundial.

Vale ressaltar, entretanto, um divisor radical entre as duas posições. O movimento antiglobalização da esquerda tem como alvo o neoliberalismo. Prega uma nova ordem global/internacional. "Um outro mundo é possível" é a frase que marca esse movimento.

Torre Eiffel deserta: pandemia afetou o turismo, um dos motores da globalização.| Foto: Thomas Samson/AFP

Choque histórico na globalização

Há evidências de que a tragédia global do Sars-Cov-2 deu voz a defensores do fortalecimento dos organismos internacionais e multilaterais como forma de resolver problemas comuns de uma pandemia, a qual não respeita fronteiras. Mas os fatos registrados até agora na economia e na vida social e cultural mostram que, pelo contrário, a pandemia teve impacto negativo na globalização. Os dados deixam claro que a covid-19 aplicou o maior golpe que a globalização já sofreu nas décadas recentes. E mais: reforçou movimentos nacionalistas e impediu a continuidade de práticas universalistas nos mais diversos setores.

O choque da pandemia na globalização da economia e na vida das pessoas é facilmente verificado com uma rápida análise de dados do comércio, do turismo e viagens, de eventos esportivos internacionais, das turnês globais de artistas, da reciprocidade estudantil, da pluralidade da troca de conhecimentos e de muitas outras atividades. Os intercâmbios globais foram aniquilados em poucas semanas.

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Um desses fatos evidenciados de desmoronamento da ordem internacional surgida no século 20 é a dificuldade da União Europeia em reforçar o multilateralismo para enfrentar o coronavírus. O fechamento generalizado de fronteiras e a retratação dos governos nacionais para dentro de suas fronteiras revelam uma tendência preocupante de unilateralismo dentro do bloco.

A Organização Mundial do Comércio (OMC) prevê que o comércio mundial – principal via de desenvolvimento econônimo – poderá contrair até 32% em 2020, muito mais do que na crise financeira de 2008, devido à "recessão mais profunda de nossa existência" decorrente da pandemia do novo coronavírus.

O turismo, meio de integração entre povos e culturas, está entre os setores que sofreram maior baque. A queda no número de viagens pode chegar a 80% em 2020, segundo estimativa feita em relatório divulgado último dia 7 pela Organização Mundial do Turismo (OMT).

Com as restrições à circulação de pessoas pelo planeta e o fechamento de fronteiras, a migração – fator de estímulo à globalização – teve bloqueio quase que total. Em todo o planeta levantam-se vozes que apontam o mundo globalizado como o responsável pela ‘globalização do coronavírus’, movimentos esses reforçados por xenofobia e racismo.

Comércio internacional, que impulsiona a globalização, foi um dos setores mais afetados pela pandemia.| Foto: IvanBueno/ArquivoAPPA/ANPr
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Recuo é anterior à pandemia

Muitos analistas da globalização observam que o recuo do sistema aberto de comércio que dominou a economia mundial nos últimos 40 anos começou bem antes da declaração da pandemia de coronavírus. O primeiro baque veio com o colapso do Lehman Brothers, em 2008, e a consequente crise financeira mundial. Depois vieram novas barreiras com as disputas econômicas entre Estados Unidos e China, com medidas de fechamento e imposição de sanções comerciais dos dois lados. Esses dois fatos são a crista mais visível dessa onda, mas em todos os continentes há alguns anos vinham se desenrolando medidas de retrocesso à globalização.

Agora, com o terremoto da pandemia, muitas pessoas estão perguntando se estamos vendo o começo do fim da globalização, se teremos que reavaliar a divisão global do trabalho, se os países precisam trazer as fábricas de volta para casa e se existe uma alternativa funcional para a indústria global que foi construída nas últimas décadas.

A globalização não é um fenômeno recente, mas só nas últimas quatro décadas surgiu como tendência crescente e tornou-se o motor da economia em todos os países. Elijah M. James (2009), professor de economia em várias instituições – com destaque para a Universidade de Concordia, em Montreal (Canadá) –, descreve em seu livro Macroeconomics in class o termo globalização como “o rápido fluxo internacional de capitais, informações, conhecimento, produtos e serviços, comunicação e pessoas”.

A globalização é a razão pela qual as economias são mais produtivas, mais eficientes e, sim, mais resistentes diante dos choques.

Salvatore Babones, pesquisadora do Centro de Estudos Independentes em Sydney.

Salvatore Babones, professora na Universidade de Sydney e pesquisadora do Centro de Estudos Independentes em Sydney, diz que, longe de ser o vilão de seus críticos, "a globalização é a razão pela qual as economias são mais produtivas, mais eficientes e, sim, mais resistentes diante dos choques".

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“A impressão popular é que as redes de produção globalizadas são vulneráveis e frágeis devido à sua incrível complexidade e podem ser facilmente interrompidas devido às práticas de gerenciamento de inventário just-in-time (na hora certa). De fato, grande parte do desdobramento da economia relacionado à pandemia foi atribuída à ruptura dessas redes. Mas essa impressão é completamente equivocada. As redes de produção são incrivelmente complexas – mas essa complexidade lhes dá força, como uma rede densa feita de fios delicados”, escreveu Babones em artigo na revista Foreign Policy e divulgado em vários veículos de comunicação.

Em outro polo desse jogo de posições, o sociólogo e professor Walden Bello – autor de vários livros sobre globalização, entre eles Desglobalização: ideias para uma nova economia mundial – prevê que o mundo pós-pandemia caminhará em direção a uma maior auto-suficiência na produção industrial e agrícola. "A questão é se essas estratégias serão desenvolvidas por regimes de direita ou por governos progressistas", questiona.

Richard Nathan Haass, presidente do Conselho de Relações Exteriores e ex-diretor de planejamento de políticas do Departamento de Estado dos Estados Unidos, observa – em artigo publicado pelo Project Syndicate e reproduzido pelo site do Fórum Econômico Mundial – diz que a globalização, em suas várias formas, pode ser destrutiva e construtiva, e que nos últimos anos um número crescente de governos e pessoas em todo o mundo passou a vê-la como um risco líquido.

Haass enfatiza que as pessoas e mercadorias sempre se deslocaram pelo mundo, seja no alto mar ou na antiga Rota da Seda. O que tornou diferente nas últimas décadas foram a escala, velocidade e variedade desses fluxos.

“A globalização foi impulsionada pela tecnologia moderna, desde aviões a jato e satélites até a internet, bem como por políticas que abriram mercados para comércio e investimento”, descreve ao defender que a desglobalização é um processo que tem custos e limites.

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Crítico do modelo de produção que se baseia numa cadeia produtiva globalizada, o economista Niko Paech, professor da Universidade de Siegen (Alemanha), tem defendido que a pandemia de coronavírus pode ser uma oportunidade para o desenvolvimento de um modelo econômico mais sustentável, seguro e também mais estável diante de crises.

Em entrevista à revista DW Brasil, Paech diz que o atual modelo de produção globalizada é um tipo de economia de céu de brigadeiro. “Quando não há crise ou interrupção, ele é vantajoso por reduzir custos, mas quando um elemento dessa rede em algum lugar falha, o modelo desmorona, pois os países se fizeram cada vez mais dependentes dos entrelaçamentos globais”, avalia ao afirmar que a pandemia pode representar uma chance para mudanças.

“O mundo será instável, compartimentado e suas partes sob suspeita mútua. Haverá empobrecimento geral e desaceleração tecnológica. Se antes havia sincronia e concerto, agora haverá assincronia e desordem. Navegação em águas turbulentas. Bem-vindos ao século 21”, lança Toni Timoner, especialista em cenários de risco global em artigo publicado por Letras Libres, plataforma multimídia de reflexão política e cultural.

*Foram acrescentadas novas informações ao texto em 18/05, após a publicação em 17/05.