Desde o dia 30 de abril está valendo a nova versão do Código de Ética Médica. Apesar de quase despercebido do grande público, o documento impacta não só os profissionais de medicina. O conjunto de princípios que estabelece os limites, os compromissos e os direitos assumidos pelos médicos no exercício da profissão atinge também quem precisa dos serviços da medicina.
O respeito à autonomia do paciente, a preservação do sigilo profissional na relação entre médico e paciente e a proibição ao médico de realizar consultas a distância estão entre as questões abordadas no documento. O texto também prevê o direito de o médico exercer a profissão de acordo com sua consciência e a possibilidade de recusa de atender em locais com condições precárias, que expõem ao risco pacientes e profissionais.
Logo após a publicação do novo código, a proibição das consultas a distância foi motivo de dúvidas. Alguns veículos de comunicação chegaram a noticiar que o trecho da versão anterior do código – a qual proibia tal prática – havia sido retirado do documento. Mas a questão foi esclarecida dois dias depois pelo Conselho Federal de Medicina (CFM).
“A revisão do Código de Ética Médica foi feita sob o prisma de zelo pelos princípios deontológicos da medicina, sendo um dos mais importantes o absoluto respeito ao ser humano, com a atuação em prol da saúde dos indivíduos e da coletividade, sem discriminações.”
Carlos Vital Tavares Corrêa Lima, Presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM).
Em resposta às dúvidas, o corregedor do Conselho, José Fernando Maia Vinagre – que atuou como coordenador-adjunto do processo de revisão da norma – explicou que a confusão ocorreu pelo fato de ter sido feito o deslocamento do texto referente a consultas a distância. No Código de 2010, a proibição estava no artigo 114. Na versão que entrou em vigor em 30 de abril, o conteúdo que trata do tema foi incorporado ao artigo de número 37, no capítulo que aborda a relação do médico com pacientes e familiares.
“É vedado ao médico prescrever tratamento e outros procedimentos sem exame direto do paciente, salvo em casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada de realiza-lo, devendo, nesse caso, fazê-lo imediatamente depois de cessado o impedimento, assim como consultar, diagnosticar ou prescrever por qualquer meio de comunicação de massa”, diz o documento.
Para o CFM, a avaliação de sinais e sintomas, a definição do diagnóstico e a escolha das opções terapêuticas devem ser feitas no contato direto entre o profissional e o paciente. “No entendimento dos conselhos de medicina, esse contato presencial é essencial”, enfatiza texto publicado no portal da autarquia ao acrescentar que “essa relação deve ser preservada de forma a assegurar a qualidade da assistência, o sigilo das informações e a autonomia dos indivíduos envolvidos no processo do atendimento”.
Abertura a inovações
Mas o veto não significa que os conselheiros estão fechando a porta para inovações tecnológicas no atendimento médico. O corregedor Maia Vinagre observa que a tecnologia sempre deve ser utilizada em benefício do paciente e do médico. Tanto assim que dois parágrafos do artigo 37 deixaram em aberto a normatização da telemedicina (veja matéria a seguir) e do uso de mídias sociais por meio de resoluções do CFM. Essa abertura se dá, no entendimento dos conselheiros, pelo fato de que as transformações tecnológicas ocorrem muito rapidamente e o Conselho precisa estar instrumentalizado para acompanhar tais inovações.
A relação dos médicos com veículos de comunicação – incluindo mídias sociais – é tratada em várias resoluções do CFM, em especial as normativas de números 1.974/2011 e 2.126/2015. A primeira, editada oito anos atrás, estabelece que, por ocasião das entrevistas, comunicações, publicações de artigos e informações ao público, o médico deve evitar sua autopromoção e sensacionalismo, preservando, sempre, o decoro da profissão.
“É vedada a publicação nas mídias sociais de autorretrato (selfie), imagens e/ou áudios que caracterizem sensacionalismo, autopromoção ou concorrência desleal”, estabelece a resolução em seu parágrafo 2º do artigo 13. No parágrafo 3º deixa claro que “é vedado ao médico e aos estabelecimentos de assistência médica a publicação de imagens do ‘antes e depois’ de procedimentos”. A norma diz ainda que “a publicação por pacientes ou terceiros, de modo reiterado e/ou sistemático, de imagens mostrando o ‘antes e depois’ ou de elogios a técnicas e resultados de procedimentos nas mídias sociais deve ser investigada pelos Conselhos Regionais de Medicina”.
A segunda resolução (2.126), publicada há cerca de quatro anos, definiu como mídias sociais sites, blogs, Facebook, Twiter, Instagram, YouTube, WhatsApp e similares. E proibiu a publicação nas mídias sociais de autorretrato (selfie), imagens e/ou áudios que caracterizem sensacionalismo, autopromoção ou concorrência desleal.
Outros pontos
O Código de Ética Médica é resultado de três anos de discussões e análises. Os debates foram abertos à participação de toda a categoria por meio de entidades e também pela manifestação individual dos profissionais.
O CFM destaca entre as principais novidades o respeito ao médico com deficiência ou doença crônica, assegurando-lhe o direito de exercer suas atividades profissionais nos limites de sua capacidade e também sem colocar em risco a vida e a saúde de seus pacientes.
No tocante às pesquisas em medicina, a nova norma manteve a proibição do uso do placebo (substância sem propriedades farmacológicas) de maneira isolada em experimentos, quando houver método profilático ou terapêutico eficaz.
O documento incorpora a obrigação da elaboração do sumário de alta e entrega ao paciente quando solicitado (documento importante por facilitar a transição do cuidado de uma forma mais segura, orientando a continuidade do tratamento do paciente e realizando a comunicação entre os profissionais e entre serviços médicos de diferentes naturezas). Assim, o novo código autoriza o médico, quando for requisitado judicialmente, a encaminhar cópias do prontuário sob sua guarda diretamente ao juízo requisitante. No código anterior, esse documento deveria ser disponibilizado ao perito médico nomeado pelo juiz.
O processo de revisão do código, segundo o CFM, teve a preocupação de aliar “o espírito inovador à preservação dos princípios deontológicos da profissão”. Entre as diretrizes mantidas, estão a consideração à autonomia do paciente e o respeito à sua dignidade quando em estado terminal, a preservação do sigilo médico-paciente e a proteção contra conflitos de interesse na atividade médica, de pesquisa e docência.
O código enfatiza a valorização do prontuário como principal documento da relação profissional, proíbe a cobrança de honorários de pacientes assistidos em instituições que se destinam à prestação de serviços públicos e reforça necessidade de o médico denunciar aos Conselhos Regionais de Medicina (CRMs) instituições públicas ou privadas que não ofereçam condições adequadas para o exercício profissional ou não remunerem digna e justamente a categoria.
“Tanto na revisão do Código realizada em 2009, como desta vez, mantemo-nos fiéis às diretrizes norteadoras estabelecidas em 1988, baseadas na dignidade humana e na medicina como a arte do cuidar”, ressaltou o coordenador da Comissão Nacional de Revisão do Código de Ética Médica e presidente do CFM, Carlos Vital, ao avaliar a forma de condução dos trabalhos.
O que diz o novo código
É vedado ao médico (Capítulo V – Relação com pacientes e familiares):
Artigo 37
Prescrever tratamento e outros procedimentos sem exame direto do paciente, salvo em casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada de realizá-lo, devendo, nesse caso, fazê-lo imediatamente depois de cessado o impedimento, assim como consultar, diagnosticar ou prescrever por qualquer meio de comunicação de massa.
Parágrafo 1º
O atendimento médico a distância, nos moldes da telemedicina ou de outro método, dar-se-á sob regulamentação do Conselho Federal de Medicina.
Parágrafo 2º
Ao utilizar mídias sociais e instrumentos correlatos, o médico deve respeitar as normas elaboradas pelo Conselho Federal de Medicina.
Divergências adiam regulamentação da telemedicina
No dia 3 de fevereiro deste ano, depois de um longo processo marcado por muita polêmica e expectativa, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a resolução 2.227/2018, que abria um amplo campo de atuação por meio da telemedicina. O documento normatizava uma série de serviços de saúde que os médicos poderiam prestar remotamente, como avaliações, consultas e até cirurgia por meio de infraestrutura de tecnologia de informação (TI). Mas a nova legislação durou pouco. Vinte dias depois, em 22 de fevereiro, o Conselho revogou a resolução.
A decisão aconteceu, segundo o CFM, após manifestações de médicos e entidades de todo o país, entre elas vários Conselhos Regionais de Medicina (CRMs) e a Associação Médica Brasileira (AMB). De acordo com a autarquia, foram apresentadas mais 1,4 mil propostas de alteração dos termos da resolução, o que tornou necessário mais tempo para avaliar a questão.
O objetivo da revogação, ainda de acordo com o CFM, foi “entregar aos médicos e à sociedade em geral um instrumento que seja eficaz em sua função de normatizar a atuação do médico e a oferta de serviços médicos à distância mediados pela tecnologia".
“A referida resolução tem potencial para modificar radicalmente a forma como a Medicina é praticada há milênios, implicando em possíveis e irreparáveis danos a sociedade, ao invés de beneficiá-la”, publicou em nota o CRM de Mato Grosso. O Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) e mais duas entidades do estado, o Sindicato Médico (Simers) e a Associação Médica (Amrigs), também publicaram nota – em conjunto – pela qual ter “inúmeras críticas e sugestões para a melhor incorporação dessa tecnologia à boa prática médica e para a saúde da população”.
Inicialmente, o CFM abriu prazo de 60 dias para receber contribuições relativas à resolução. A entidade federal concordou em receber dos Conselhos Regionais de Medicina (CRMs), das entidades médicas e da categoria propostas para o aperfeiçoamento da norma. O prazo para enviar as sugestões terminaria no dia 7 de abril, mas diante do grande número de propostas, o Conselho decidiu ampliar para até 31 de junho.
As propostas enviadas, segundo a entidade, estão sendo compiladas e serão analisadas por uma comissão, criada especialmente para estudar o que for sugerido e apresentar uma proposta de atualização da Resolução 1.643/2002, que atualmente regulamenta a telemedicina no país.
A telemedicina permite que os profissionais de saúde avaliem, faça diagnósticos e realize tratamentos, inclusive cirurgias, usando tecnologias de comunicação remota, a exemplo de videoconferência, uso de dispositivos móveis e outras tecnologias.