Iniciado pela África do Sul e a Índia, um movimento para que os laboratórios de todo o mundo renunciem temporariamente aos seus direitos de patentes de vacina contra Covid-19 vem ganhando força. Hoje, mais de 100 países apoiam a iniciativa, que também tem respaldo da Organização Mundial de Saúde (OMS). Do outro lado, países-sedes de grandes laboratórios se opõem à ideia e temem quebra de patentes de vacinas.
As propostas defendidas pelos países que querem facilitar a fabricação de vacinas vão da licença compulsória, conhecida como "quebra de patente", a uma negociação com os laboratórios para melhor recompensar os desenvolvedores de tecnologia de saúde, com compras baseadas em valores de direitos de propriedade intelectual.
A pressão sobre a OMS para negociar uma solução que permita a produção mais rápida e em maior quantidade de vacinas contra Covid-19 aumenta a cada dia.
Em artigo publicado nesta sexta-feira (05) no jornal britânico The Guardian, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, defendeu a renúncia temporária de direitos de patente por parte dos laboratórios. “O mundo precisa estar em pé de guerra”, escreveu ao dizer que isso permitiria produzir e vender cópias baratas de vacinas que foram inventadas ou que venham as ser aprovadas em breve para atender os países pobres.
Países onde estão sedes de grandes indústrias farmacêuticas, como Estados Unidos, França, Suíça, Noruega, Reino Unido, Canadá, Japão e Austrália, são radicalmente contra o licenciamento compulsório. Um dos principais argumentos apresentados pelos grandes produtores de medicamentos – liderados pela Federação Internacional de Associações e Fabricantes de Produtos Farmacêuticos, com sede na Suíça –, é o desestímulo ao investimento privado em pesquisa e inovação, o que levaria o setor à insustentabilidade.
A proposta para recompensar os laboratórios e desenvolvedores de tecnologia de saúde por meio de compras baseadas em valores de direitos de propriedade intelectual para as vacinas deles, segundo muitas autoridades, apesar de ser fácil de negociar, tem como ponto negativo o fato de que as vacinas ainda continuariam caras. Países pobres, especialmente da África e da América Latina, tem recursos escassos para gastar e precisariam de apoio.
O tema do acesso a vacinas deverá entrar na pauta da reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), prevista para a próxima semana, quando a declaração da pandemia completará um ano. O argumento favorável a uma solução que permita o aumento da oferta de vacinas e o barateamento do produto tem como base os estudos de economistas, os quais concluem que as atividades econômicas globais só voltarão à normalidade com a vacinação em massa.
Quando a Índia e a África do Sul propuseram à OMC o licenciamento compulsório de vacinas, em outubro do ano passado, o Brasil se posicionou contra a quebra de patentes de vacinas contra Covid-19. Em reuniões internas da organização, o Brasil foi o único entre os principais emergentes a se posicionar dessa forma. A China, que tem várias vacinas nacionais contra a covid-19 aprovadas ou em desenvolvimento, não disse ser contra e afirmou estar aberta à análise.
O Brasil tem história quando se trata de quebra de patentes de medicamentos. Em 2001, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), o então ministro da Saúde José Serra decidiu quebrar a patente de remédios usados por portadores do vírus HIV. O gesto fez com que os laboratórios cedessem e reduzissem os preços. Em seguida, após negociações infrutíferas com alguns laboratórios, Serra anunciou a quebra de patente dos medicamentos Interferon Peguilado, para tratamento de hepatite C, e Kaletra, para pacientes com Aids.
Em 2007, durante o governo Lula, o Brasil declarou o Efavirenz – remédio utilizado no tratamento contra a Aids – de interesse público e decidiu licenciá-lo compulsoriamente. O medicamento foi criado pelo laboratório americano Merck Sharp & Dohme.
As regras atuais permitem a quebra de patente, mas não pode ser de forma unilateral, sob pena de violação de tratados internacionais sobre propriedade intelectual. Em 1994 os países desenvolvidos conseguiram aprovar o chamado Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (Trips, na sigla em inglês), o qual uniformizou uma série de normas sobre patentes.
Mas a pressão de países emergentes fez com que se criasse uma alternativa às normas do Trips, que pode ser acionada em momentos de emergência ou de interesse público, que é a licença compulsória, usada nos governos de FHC e Lula.
Entre os grandes fabricantes, a Moderna demonstrou disposição em facilitar a fabricação de sua vacina por terceiros. Em comunicado de outubro passado, a companhia diz que “os direitos de propriedade intelectual desempenham um papel importante no incentivo ao investimento em pesquisa”, mas que, enquanto a pandemia continuar, não aplicará as patentes relacionadas à Covid-19 “contra aqueles que fabricam vacinas destinadas a combater a pandemia”. “Para eliminar quaisquer barreiras de PI percebidas para o desenvolvimento de vacinas durante o período pandêmico, mediante solicitação, também estamos dispostos a licenciar nossa propriedade intelectual para vacinas Covid-19 para terceiros no período pós-pandêmico”, diz o comunicado.
No artigo do Guardian, o diretor-geral da OMC argumenta que, com as licenças compulsórias, os fabricantes de vacina ainda receberão algum reembolso. “Renunciar temporariamente às patentes não significa que os inovadores ficarão de fora. Como durante a crise do HIV ou em uma guerra, as empresas vão receber royalties pelos produtos que fabricam ”, escreveu.
Tedros ressalta que, além da renúncia às patentes, uma série de medidas deve ser considerada no combate à pandemia. “Quer se trate de compartilhamento de doses, transferência de tecnologia ou licenciamento voluntário, como a própria iniciativa Covid-19 Technology Access Pool [CTAP] da OMS incentiva, ou renunciando aos direitos de propriedade intelectual, precisamos tirar todos os obstáculos”, descreveu.
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