Tela ‘A Lua’, da fase antropofágica da artista brasileira, é comprada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA)
Uma pequena figura humana contemplando a imensidão da noite com tons azuis ou um cacto mandacaru que se ergue solitário diante da lua minguante no céu tropical. Essas podem ser algumas das impressões ao olhar pela primeira vez a ‘A Lua”, obra da fase antropofágica de Tarsila do Amaral. O quadro, considerado um dos preferidos do escritor Oswald de Andrade – com quem a pintora foi casada –, acaba de colocar a obra artista brasileira no mesmo patamar de outros cânones do modernismo mundial. No último dia 27 de fevereiro, o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) anunciou a aquisição da tela de 110 por 110 centímetros, datada de 1928, por 20 milhões de dólares (cerca de 75 milhões de reais).
‘A Lua”, além de ser a primeira obra de Tarsila comprada pelo MoMA, converteu-se na mais cara já vendida de um artista brasileiro — superou de longe ‘Vaso de Flores’, de 1930, do modernista Alberto da Veiga Guignard, que foi arrematada na noite de 13 de agosto por R$ 5,7 milhões na Bolsa de Arte, em São Paulo.
A artista brasileira apresentou a tela em 1928, em Paris. Ao combinar elementos estéticos da cena de arte de vanguarda parisiense e motivações e estilo genuinamente brasileiros, a ‘A Lula” – um óleo sobre tela – é considerada marco da afirmação da pintura antropofágica, juntamente com ‘Abaporu’, a obra mais importante de Tarsila.
“Nós não estamos reinventando a história. Estamos recuperando um histórico que foi suprimido.”
Ann Temkin, curadora-chefe de pintura e escultura do Museu de Arte Moderna de Nova York.
Em fevereiro do ano passado, o MoMA organizou a primeira retrospectiva da modernista brasileira nos Estados Unidos, chamada ‘Tarsila do Amaral: Inventing Modern Art in Brazil’. Por mais surpreendente que possa parecer, ‘A Lua’ não estava entre as obras da exposição. A tela compunha a coleção da bilionária Fanny Feffer, acionista da Suzano Holding, controladora da Suzano Papel e Celulose.
Logo após a aquisição da obra, a revista do MoMA publicou um texto em que Ann Temkin, curadora-chefe de pintura e escultura do museu, explica que ‘A Lula’ não fez parte da retrospectiva – que teve participação do Instituto de Arte de Chicago – porque a tela não estava disponível para empréstimo na época.
“Fomos contatados pelos proprietários dessa tela no final do ano passado, após a exposição ter sido encerrada, dizendo que a pintura estava agora disponível para nós e, na verdade, não apenas para emprestar, mas para comprar. Sabíamos que isso nos tornaria o primeiro museu da América do Norte a ter uma pintura de Tarsila, então pegamos um avião e fomos para São Paulo para ver a obra”, contou Temkin ao dar detalhes de como foi a aquisição do primeiro quadro de Tarsila pelo MoMA.
A curadora fez questão de observar que o quadro de Tarsila não ficará em uma sala sobre a arte da América do Sul ou do Brasil. ‘A Lua’ vai estar ao lado de grandes mestres, como Picasso e Léger, por exemplo. “Nós não estamos reinventando a história. Estamos recuperando um histórico que foi suprimido”, diz ao explicar a ideia de colocar Tarsila no lugar em que ela merece, ao lado dos grandes nomes do movimento que agitou Paris nos anos de 1920.
Com a retrospectiva no MoMA e a posterior aquisição de ‘A Lua’, a obra de Tarsila ganhou uma nova dimensão internacional. A perspectiva é que a partir de agora deverá haver um movimento mundial de reconhecimento e valorização do legado da artista brasileira, apontada como uma das mulheres revolucionárias da história da arte.
O momento não poderia ser mais propício para a exposição prevista para 4 de abril, no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), onde 120 obras de Tarsila vão compor a maior retrospectiva da pintora em território brasileiro.
Tarsila do Amaral passou mais de 50 anos de sua vida produzindo. São cerca de 2.200 obras, das quais pouco mais de 240 são pinturas de óleo sobre tela. Os quadros da artista disponíveis para compra se tornaram raros e os preços saltam exponencialmente a cada ano. A tela ‘Abaporu’, que foi comprada em 1995 pelo Museu de Arte Latino-Americano de Buenos Aires (Malba) por 1,4 milhão de dólares, está avaliada hoje em cerca de 30 milhões de dólares.
Fases de criação
A vasta obra de Tarsila do Amaral é dividida em várias fases, com destaque para os períodos Cubista, Pau Brasil, Antropofágico e Social.
Primeiros anos
Nesta primeira parte são reunidas obras da fase em que a artista era ainda menina, no colégio em Barcelona (Espanha), em São Paulo, em Paris em 1920 e o retorno à capital paulista, quando começou a aderir ao modernismo brasileiro. Seu primeiro quadro, ‘Sagrado Coração de Jesus’, foi pintado em 1904, em Barcelona.
Cubismo
De volta a Paris, em 1923, Tarsila conhece o poeta francês Blaise Cendrars, que apresenta a ela toda a intelectualidade do mundo que vivia na capital francesa naquela época. Lá teve aulas com o já consagrado pintor cubista Fernand Léger e outros mestres do cubismo, como com André Lhote e Albert Gleizes. O quadro Caipirinha, de 1923, integra essa fase, mas foi com ‘A Negra”, também de 1923, que Tarsila conquistou um lugar pioneiro na arte brasileira.
Pau Brasil
Uma viagem ao Rio de Janeiro no Carnaval e às cidades históricas de Minas Gerais, para mostrar o Brasil ao poeta Blaise Cendrars, fez Tarsila redescobrir as cores que gostava na infância, as cores caipiras. Contrariando seus mestres, que diziam para ela não usar aquelas cores, ela decidiu levá-las para suas telas. Surgia aí o casamento entre a técnica cubista e a temática brasileira. Desta fase de sua obra há quadros como ‘Carnaval em Madureira’, ‘Morro da Favela’, ‘O Mamoeiro’ e ‘O Pescador’.
Antropofagia
Começou com um presente que Tarsila deu ao seu marido na época, o escritor Oswald de Andrade. Após ganhar a tela ‘Abaporu’, Oswald escreveu o Manifesto Antropófago e fez o Movimento Antropofágico, marcos do movimento modernista no Brasil. A figura do Abaporu simbolizou o Movimento que queria deglutir a cultura europeia, que era a cultura vigente na época, e torna-la algo bem brasileiro. É desta fase também ‘A Lua’, que agora foi adquirida pelo MoMA, de Nova York.
Social
Registra um momento em que a pintora esteve engajada com o movimento socialista internacional. Nesse período ela fez uma Exposição em Moscou, em 1931, e depois passou a participar de reuniões do Partido Comunista, acompanhada do seu namorado na época, o médico Osório César. Após conviver com operários do Brasil e de outros países, pintou a reconhecida obra ‘Operários’, em 1933. É desta fase também ‘Segunda Classe’, obra de forte crítica social.
Neo Pau Brasil
Em meados dos anos quarenta, Tarsila fez quatro obras magníficas, Praia (1947), Primavera (1946), Roda (1947) e Terra (1943), com uma evocação antropofágica, corpos distendidos no espaço infinito, e uma atmosfera de sonho. E a partir de 1950, ela voltou com a temática Pau Brasil com a tela ‘Fazenda’. Outras telas desta fase são ‘Vilarejo com ponte e mamoeiro´, ´Povoação I´ e ´Porto I´.
Riqueza, decepções amorosas, empobrecimento e fama
Paixão, decepções, celebridades da literatura e das artes plásticas, agitação cultural e luta política são algumas das marcas da vida pessoal e profissional de Tarsila do Amaral. Filha de fazendeiros, passou a infância nas fazendas de sua família, em Capivari, no interior de São Paulo. A riqueza do pai, que era um dos ‘barões do café’ no início do século passado, permitiu que a menina interiorana fosse estudar em São Paulo, no Colégio Sion, em Barcelona, na Espanha, onde pintou seu primeiro quadro, ‘Sagrado Coração de Jesus’, em 1904, e em Paris.
Um dos primeiros fatos marcantes da vida de Tarsila foi a separação do primeiro marido, André Teixeira Pinto. O caso foi considerado uma quebra de tabu na época entre as famílias abastadas de São Paulo. Ela não aceitava a visão conservadora que André tinha sobre o papel da mulher.
Outro fato marcante foi o casamento, em 1926, com Oswald de Andrade, escritor que integrou o grupo responsável pelo movimento modernista no Brasil. Isso só foi possível graças à influência e o prestígio de sua família. O pai de Tarsila, José Estanislau do Amaral, conseguiu na Justiça anular o seu primeiro casamento.
A união de Tarsila com Oswald se transformou em símbolo do modernismo, embora ela não tenha participado da Semana de 22 – estava estudando na Europa. Mas o casamento não teve final feliz. O escritor se apaixonando por uma jovem escritora, Patrícia Galvão (conhecida como Pagu), uma das principais amigas da Tarsila. No livro ‘Amores Proibidos na História do Brasil’ (editora Contexto), o pesquisador Maurício Oliveira conta que, no início, Tarsila até aceitou o triângulo amoroso (e intelectual), mas não demorou muito. A pintora se sentia traída por Oswald, e principalmente por Pagu, a quem chamou pejorativamente de “a normalista”.
Após ter se libertado das restrições do primeiro marido, Tarsila se aventurou em uma jornada de viagens, estudos e imersão no mundo das artes. Em 1923 viajou com Oswald de Andrade para Paris, onde conheceram o poeta Blaise Cendrars e foram apresentados à intelectualidade parisiense. A viagem abriu as portas para ela estudar com o mestre cubista Fernand Léger e outros mestres cubistas. A amizade com Cendrars possibilitou ainda à brasileira conhecer pintores como Picasso; escritores importantes, como Jean Cocteau; escultores, como Brancusi e músicos, como Stravinsky.
A capital francesa foi palco ainda da aproximação de Tarsila com outros brasileiros que estavam vivendo lá, como o compositor Villa Lobos e o pintor Di Cavalcanti.
A vida de glamour durou até surgirem as dificuldades financeiras e uma decepção amorosa no final dos anos de 20. Com a Grande Depressão mundial, em 1929, a família da artista foi atingida pela crise do café e perdeu grande parte de sua fortuna. Se não bastasse o empobrecimento, Oswald de Andrade a abandonou para ficar com a revolucionária Pagu.
Com as finanças destroçadas, em 1930 Tarsila conseguiu emprego de conservadora na Pinacoteca do Estado de São Paulo, mas foi demitida com a ditadura de Vargas. Em 1931, após se casar com o psiquiatra Osório Cesar, viajou para a União Soviética, onde deu início a uma nova fase de atuação política, voltada à temática social. De lá foi para Paris, cidade em que chegou a trabalhar como pintora de paredes em construções e teve contato cotidiano com a classe operária. Foi nessa ‘fase social’ que a pintora conheceu o escritor Luiz Martins, 20 anos mais jovem que ela, e com quem veio a morar juntos após ter se separado de Osório.
Os últimos anos de vida de Tarsila foram difíceis. Em 1966, a artista perdeu a filha, que morreu de um ataque de diabetes. Um ano antes, após ter se separado de Martins, ela se submeteu a uma cirurgia devido a dores fortes que sentia na coluna. Por um erro médico, não pode mais andar e passou a depender de cadeira de rodas.
Viveu seus dias derradeiros em meio às dificuldades e a glória. Suas obras a cada ano ganhavam mais reconhecimento e Tarsila passava a ser reconhecida em todo o mundo. Faleceu em janeiro de 1973, aos 86 anos. (CM)