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A proposta da chamada PEC da Transição, apresentada na quarta-feira (16/11) a líderes do Senado e da Câmara dos Deputados, provocou uma série de reações nos últimos dias, alvoroço no mercado financeiro e dominou o debate sobre o futuro governo Lula. O tema foi motivo de uma carta direcionada ao presidente eleito, por economistas do Plano Real – Armínio Fraga, Edmar Bacha e Pedro Malan –, os quais rebateram críticas do petista ao mercado financeiro, manifestaram preocupação com a responsabilidade fiscal e defenderam o teto de gastos. Em seguida, um grupo de economistas progressistas, entre eles Luiz Carlos Bresser-Pereira (ex-ministro da Fazenda/professor da FGV-SP) e José Luis da Costa Oreiro (professor da UnB), saíram em defesa de Lula e da PEC de Transição. Os argumentos dos dois lados mostram mais uma polarização da sociedade brasileira: os que defendem a responsabilidade fiscal acima de tudo e de todos versus aqueles que veem a responsabilidade social como prioridade no momento.

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Excluindo os atores que jogam rasteiro em um debate fundamental para o país, as divergências em torno dos gastos e da urgência em socorrer uma grande parcela da população em estado de miséria têm propiciado a retomada de discussão de grandes temas nacionais, ofuscados nos últimos anos pela ausência de um projeto de nação. Entretanto, para a população em geral, que não recebe informações necessárias, é preciso possibilitar o acesso a mais dados sobre pontos cruciais da polaridade entre responsabilidade fiscal versus responsabilidade social, os quais deveriam fundamentar as decisões do governo e do Congresso Nacional.

Primeiramente, é preciso considerar que o Teto de Gastos, instituído em 2017, já nasceu furado. Em poucos anos virou uma peça de ficção. Somente nos quatro anos do governo Bolsonaro, os furos no teto devem superar R$ 800 bilhões. Mas antes de Paulo Guedes & Cia a goteira do furo no teto já havia aparecido. O primeiro arrombamento foi do próprio criador da coisa, o ex-presidente Temer. Segundo cálculos da economista Vilma da Conceição Pinto, diretora na Instituição Fiscal Independente (IFI), divulgados pela jornalista Flávia Oliveira, em O Globo, a goteira do furo de Temer vazou R$ 45,7 bilhões em menos de dois anos. No caso de Bolsonaro há quem argumente “veja, foi a pandemia”, mas, excluindo a emergência sanitária, os números do buraco em anos sem pandemia (2019 e 2022, ainda não fechado) superam R$ 170 bilhões.

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O segundo ponto a ser observado é que o desequilíbrio entre gastos e arrecadação do governo se dá por uma série de motivos. Além de despesas desnecessárias, os privilégios fiscais (subsídios), o orçamento secreto, a evasão fiscal e a fuga ilegal (remessas ilegais) de capital comprometem a arrecadação – sem considerar que também impõem uma alta carga tributária incidente sobre quem paga os impostos rigorosamente. A essa bagunça soma-se o absurdo dos juros da dívida.

Um levantamento do Instituto para Desenvolvimento do Varejo (IDV) e da consultoria McKinsey, de novembro de 2021, mostra que a evasão fiscal no Brasil somou de R$ 460 bilhões a R$ 600 bilhões em 2020, somando tributos federais, estaduais e municipais. Nenhum país desenvolvido do mundo tem um nível de sonegação fiscal como o Brasil. A consequência desse descalabro é o aumento da tributação sobre quem cumpre seus compromissos com o fisco.

As isenções fiscais (subsídios), que ajudaram a afundar o governo Dilma, é outro cofre que precisa ter o segredo desvendado para a população. Sem clareza para o cidadão e a cidadã comuns, nas isenções fiscais estão privilégios que deformam o sistema tributário, penalizando uns e beneficiando outros, muitas vezes sem nenhuma necessidade de incentivos. O Tribunal de Contas da União (TCU) entregou na quarta-feira (16/11) um relatório ao Gabinete de Transição, liderado pelo vice-presidente eleito Geraldo Alckmin, em que o órgão aponta 29 áreas críticas no aspecto fiscal. De acordo com o relatório, as isenções fiscais a serem herdadas pelo novo governo chegam a R$ 400 bilhões.

Outro sumidouro de dinheiro do Brasil são as remessas ilegais para paraísos fiscais. Cálculos de 2016 davam conta que o fluxo de capitais do Brasil para diversos cantos do mundo, saído do país sem dar declarações ao fisco, era estimado em cerca de US$ 400 bilhões. De lá para cá não parou de crescer e hoje há projeções que beire o meio trilhão de dólares. Esse é um capítulo dos mais cruéis à população brasileira, considerando que, por meio das remessas ilegais, levam embora parte das riquezas do país.

Não é de hoje que o sumidouro das remessas ilegais é conhecido, mas pouco se tem feito para evitar. O escândalo do Banestado – extinto Banco do Estado do Paraná –, na segunda metade da década de 1990, envolveu remessas ilegais de divisas para exterior em mais de R$ 30 bilhões, de acordo com cálculos considerados abaixo da realidade. Uma CPI instalada no Congresso para investigar não só o caso Banestado, como também todas as denúncias de evasão de divisas, de 1996 a 2002, concluiu que só no caso Banestado foram desviados cerca de US$ 20 bilhões (mais de R$ 100 bilhões). Ao identificar o envolvimento de grandes empresários e políticos, a CPI foi encerrada, isto é, não deu em nada.

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O pagamento de juros da dívida pública brasileira é outro câncer que impede a retirada da miséria dos milhões de brasileiros que hoje não tem acesso nem mesmo a uma alimentação adequada, trava os investimentos e aniquila o crescimento.

Apesar de uma leve redução em setembro de 2022, de 0,51% em relação a agosto, a Dívida Pública Federal (DPF) chegou a R$ 5,75 trilhões. O principal montante dessa dívida pertence à chamada Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi), que corresponde a R$ 5,49 trilhões, cerca de 95% do total da dívida pública do governo federal.

Essa dívida (DPMFi) é para com Fundos de Investimento, Fundos de Previdência, Instituições Financeiras, Não residentes, Governo, Seguradoras e Outros. O grosso da dívida é para Instituições Financeiras, Fundos de Investimento e Fundos de Previdência, que, juntos, detém cerca de 75% dos créditos.

Os Fundos de Investimento são compostos basicamente por investimentos de pessoas físicas e de pessoas jurídicas não-financeiras. Já os Fundos de Previdência incluem a carteira própria da previdência privada (entidades abertas e fechadas da previdência complementar). Instituições Financeiras compreendem a carteira própria de bancos comerciais nacionais e estrangeiros, bancos de investimento nacionais e estrangeiros, corretoras, distribuidoras e bancos estatais.

O problema não é tanto o montante da dívida. A questão é o juro alto. Há países, como a Espanha, que pagam apenas 2% ao ano de juro de sua dívida pública. No Brasil, os juros vãos às alturas e consomem montanhas de dinheiro. Em 2021, o país pagou R$ 448,39 bilhões de juros da dívida pública. Neste ano, pode chegar a R$ 700 bilhões. É o paraíso dos rentistas.

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Com esses dados, e outros que ficaram de fora, fica evidente que os R$ 175 bilhões reivindicados pelo governo Lula para aliviar o sofrimento de quem vive em estado de penúria é um valor irrisório. Os dados também desqualificam qualquer argumento dos fundamentalistas do teto de gastos fictício. Há muita miopia em torno da responsabilidade fiscal - medida imprescindível, que se frise, para o equilíbrio econômico e financeiro do país -, mas que é analisada de forma manca, deturpada e voltada a interesses escusos, de grupos de privilegiados, como o mercado financeiro.

Com um ataque direto aos pontos nevrálgicos da economia brasileira e corte de gastos desnecessários, o próximo governo poderá ter não só recursos para o social, mas principalmente para investimentos, fundamentais para o crescimento econômico, a geração de empregos, a redução das desigualdades e ainda para abater a dívida.