Estudo analisa o comércio de aves em países da Amazônia 50 anos após o Brasil ter proibido a exploração econômica de animais silvestres
Na segunda década do século passado, um comerciante de aves silvestres de Londres importou 400 mil beija-flores do Brasil. Pouco tempo depois, em 1932, cerca de 25 mil beija-flores foram caçados no estado do Pará e enviados para a Itália para adornar caixas de chocolate. Com o desenvolvimento do transporte aéreo comercial, a partir de 1950, houve um incremento do ataque à fauna de países sul-americanos e centenas de milhares de aves vivas foram exportadas. No total, mais de um milhão de aves da América do Sul acabaram como animais de estimação em outras partes do planeta.
Na América do Sul, 441 espécies de aves estão globalmente ameaçadas (International Union for Conservação da Natureza, IUCN 2015).
Com base em registros do ornitólogo Helmut Sick, que tem mais de 200 trabalhos publicados sobre o tema, o especialista Ortiz-von Halle conta que só em 1964 — em uma única fazenda no Amapá —, 60 mil patos foram mortos. Fotos reunidas por Halle mostram caçadores fazendo pose ao lado de centenas de carcaças de uma espécie (jacutinga) característica de Londrina, no Paraná, e que hoje praticamente não existe mais. Na região do Rio Negro, um comerciante empregou 80 homens com o objetivo de caçar e matar garças. Os animais mortos abasteciam o mercado internacional de plumas e peles.
Histórias curiosas e dados alarmantes como esses estão detalhadamente relatados em um novo estudo sobre comércio de aves da América Latina, produzido em conjunto pela ONG internacional Traffic, que atua na defesa da conservação da biodiversidade e do desenvolvimento sustentável, e o World Wide Fund for Nature (WWF), uma organização não governamental presente em mais de 100 países.
Comércio, caça ilegal e caça geral afetam cerca de 225 espécies, principalmente papagaios, pássaros canoros e tucanos. Entre as famílias com algumas das maiores porcentagens de espécies globalmente ameaçadas estão albatrozes (79%), jacus (42%), papagaios (32%), codornas (29%) e pombas (13%).
O relatório de mais de 180 páginas, intitulado “Bird’s-eye view: Lessons from 50 years of bird trade regulation & conservation in Amazon countries” (Vista Aérea: Lições dos 50 anos de regulamentação e conservação do comércio de aves nos países da Amazônia, em tradução livre), esboça um panorama sobre o comércio de aves no Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru e Suriname e as consequentes ameaças à conservação de espécies que hoje se encontram em vias de extinção.
Proibição
O documento cita que após décadas de exploração intensiva e declínios maciços em muitas populações de aves, em 1967 o Brasil tornou-se o primeiro país da América do Sul a proibir, por lei, o comércio de animais silvestres, colocando ênfase na criação em cativeiro como alternativa de conservação. Mas isso não impediu o tráfico e o comércio ilegal, que continua até os dias atuais.
Nos anos seguintes à proibição, o comércio ilegal buscou rotas em países vizinhos, onde as exportações ainda eram legais (Argentina, Bolívia e Paraguai). Na década de 1980, por exemplo, mais de 10 mil araras-azuis (Anodorhynchus hyacinthinus) foram capturadas na região e levadas para outros países.
De acordo com o estudo, entre 2000 e 2013 o Peru exportou comercialmente 37.233 aves listadas na Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas de Fauna e Flora Silvestres (CITES), um quinto dessas espécies retiradas de países amazônicos. No período de 2000 a 2016, a Guiana exportou 145 mil aves pertencentes a 24 espécies listadas no Anexo II da CITES (espécies não necessariamente ameaçadas de extinção, mas cujo comércio deve ser controlado a fim de evitar usos incompatíveis com sua sobrevivência). Na Guiana, estima-se que cerca de 20 mil pessoas, cerca de 5% da população rural do país, se beneficiam dessa atividade econômica. “Embora existam quotas de aprisionamento nos dois países, elas foram estabelecidas sem o devido respaldo científico para assegurar o manejo sustentável das populações colhidas”, dizem os pesquisadores.
Seis dos dez países do mundo com o maior número de espécies de aves são encontrados na América do Sul, incluindo os três primeiros. Vale ressaltar que, embora o Equador seja um país relativamente pequeno territorialmente, ele está em quinto lugar na lista de diversidade de espécies de aves.
O Peru, como receptor e fonte de espécies de aves, é classificado pelo estudo como o maior desafio regional. O relatório também não exclui o Brasil, que “continua a ter um sério problema com o comércio interno de pássaros, apesar dos esforços rigorosos de aplicação da lei”. A cada ano, de 30 mil a 35 mil aves são confiscadas no país, número que não variou significativamente nos últimos 15 anos. Muitas dessas aves são destinadas a “competições de pássaros canoros”, onde os espectadores apostam dinheiro.
Queda
No geral, o estudo mostra que o comércio ilegal internacional de aves da América do Sul foi reduzido ao seu nível mais baixo em décadas, embora essa queda se deu por um fato trágico: as espécies de aves mais procuradas por colecionadores já existem em quantidade na maioria dos países consumidores e outras estão em extinção nos países fornecedores.
Existem cerca de 3.560 espécies de aves na América do Sul e suas águas circundantes, o que significa que cerca de quatro em dez espécies de aves do planeta podem ser encontradas no continente.
Para os pesquisadores, a redução na maioria dos mercados urbanos sul-americanos que anteriormente constituíam grandes centros comerciais ilegais de aves ajudou a salvar milhões de aves.
Ao comentar o estudo, o biólogo e analista de conservação do WWF-Brasil, Felipe Feliciani, elogia os esforços feitos por autoridades brasileiras, mas destaca que “o tráfico de animais é um triste exemplo de como o combate à ilegalidade ambiental ainda deve ser uma batalha constante no Brasil, com recursos e apoio para preservar a magnífica fauna brasileira”.
Halle, que é autor do relatório, ressalta que “a perda de habitat continua a ser a maior ameaça às populações de aves selvagens nos países amazônicos” e que “para garantir um futuro para as espécies cada vez mais ameaçadas da região, precisamos de estratégias integradas que busquem urgentemente impedir ou reverter a destruição de habitats e melhorar a fiscalização, complementados com incentivos econômicos para a geração local de renda através do turismo e uso sustentável dos recursos naturais”.
Top 10
Colômbia lidera a lista dos países com maior número reconhecido de espécies de aves
País Número de espécies Espécies ameaçadas
Colômbia—————————————1.877———————126
Peru———————————————1.857———————121
Brasil——————————————–1.809——————–170
Indonésia—————————————1.712———————155
Equador—————————————–1.619——————–106
Bolívia——————————————-1.437———————54
Venezuela—————————————1.392———————52
China——————————————–1.290———————94
Índia———————————————1.212———————88
República Democrática do Congo————1.107———————40
A jacutinga (piping-guan), uma espécie endêmica de Mata Atlântica, foi quase no norte do Paraná com a transformação das florestas em plantações de café por migrantes europeus em meados do século passado. Fotografias tiradas entre 1930 e 1940 mostram caçadores ao lado de pilhas de carcaças de jacutinga em Londrina. Naquela época, essa espécie era vendida nos mercados de rua em Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul.
Traficantes de aves mudam de técnica
Uma das preocupações de profissionais que atuam na preservação de espécies de aves e autoridades é a mutação. Depois que a América do Sul começou a tomar medidas para impedir o comércio ilegal, essa prática foi replicada em outras regiões. Entre 2000 e 2013, a África do Sul tornou-se o maior exportador de papagaios sul-americanos, segundo o estudo elaborado pela Traffic e a WWF.
30 mil a 35 mil
aves de origem ilegal são confiscadas a cada ano no Brasil.
Outra prática preocupante é o contrabando de ovos. Entre Brasil e Portugal, por exemplo, países que têm uma ligação com dezenas de voos diretos por semana, essa prática se tornou comum. Em vez de levarem as aves vivas, os criminosos descobriram ser possível contrabandear ovos, atividade que começou por volta de 2002, segundo o levantamento.
“Os ovos são transportados amarrados aos corpos dos passageiros para manter a temperatura de incubação durante o vôo de 10 a 14 horas. Eles são embalados em papel de seda dentro da meia-calça feminina ou vão enrolados na cintura da pessoa”, relatam os pesquisadores.
Outro problema apontado são os milhares de criadores amadores. A posse habitual de espécies de aves nativas como animais de companhia é muito difundida na América do Sul. Há ainda a situação de miséria de parte da população. “A pobreza sempre empurrará as pessoas para capturar a vida selvagem em busca de lucro ou de maneira oportunista para acessar alimentos ou outros bens”, pontua o relatório.
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