Desde quando tomou posse, em janeiro de 2017, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, acumulou uma série de decisões contrárias a organizações multilaterais de diversos setores. O republicano abandonou o Acordo de Paris sobre Mudanças Climáticas, desistiu do acordo nuclear com o Irã, deixou o Conselho de Direitos Humanos da ONU e tirou o país da Unesco, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
Trump também encerrou a participação dos EUA no Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário e assinou uma ordem executiva impondo sanções a vários integrantes do Tribunal Penal Internacional (TPI). Além disso, impediu a renovação do mandato de dois juízes do Órgão de Apelação da Organização Mundial do Comércio (OMC). O veto, na prática, deixa a OMC sem um tribunal para julgar disputas comerciais internacionais.
A última ofensiva de Trump foi contra a Organização Mundial da Saúde (OMS). Na terça-feira (7), o Departamento de Estado norte-americano informou que o governo entrou com um pedido de saída da organização, o que implicará em corte das contribuições financeiras ao organismo responsável por políticas globais de saúde.
Trump vem cumprindo sistematicamente o que anunciou durante seu discurso na Organização das Nações Unidas (ONU) em 2018. "Rejeitamos a ideologia do globalismo e adotamos a doutrina do patriotismo. Em todo o mundo, os países responsáveis devem se defender das ameaças à soberania não apenas da governança global, mas também de outras novas formas de coerção e dominação”, discursou.
Ao mesmo tempo, o presidente norte-americano reiterou o compromisso dos EUA de tornar a ONU e os diversos organismos multilaterais mais eficazes. Para isso, não descartou o corte de recursos a esses órgãos. "Estamos trabalhando para transferir mais do nosso financiamento de contribuições avaliadas para voluntárias, para que possamos direcionar os recursos americanos para os programas com o melhor registro de sucesso", disse ele.
As decisões de Trump atingem diretamente o funcionamento de várias instituições internacionais. Na OMS, por exemplo, nos primeiros três meses de 2020 os EUA investiram cerca de 115 milhões de dólares (627 milhões de reais), o que corresponde a mais de 30% dos fundos dos dez maiores colaboradores no período. A China vem em seguida, com 57,4 milhões de dólares. Mas os EUA também estão devendo repasses para a OMS: cerca de 60 milhões de dólares, segundo dados divulgados pela revista Forbes e o fórum de análise jurídica Just Security.
As medidas do presidente norte-americano têm provocado críticas de grande parte dos defensores do multilateralismo e elogios de nacionalistas. No mesmo campo de batalha se confrontam também os chamados globalistas e os antiglobalistas.
Em artigo intitulado “O multilateralismo perdeu o rumo”, publicado no último dia 7, o pesquisador sênior do Real Instituto Elcano (Madri), Andrés Ortega, “defende que o multilateralismo não é um fim em si, mas um meio, um método, não um objetivo absoluto”. Para ele, o multilateralismo está doente e falta consenso sobre o que queremos cooperar, para o que queremos ser multilaterais.
“O multilateralismo é a aliança de poderes em busca de objetivos comuns. É contrário ao unilateralismo (agindo sozinho), ao lateralismo, que pode levar à anarquia e caos globais, e a 'todo homem por si!'. Envolve acordos em que a falta de acordo deixaria todo mundo em pior situação”, escreve Ortega.
Ortega ressalta, no entanto, que o multilateralismo moderno passou a ser associado à globalização e ao globalismo. “Trump e seus seguidores rejeitam ambos como parte do mesmo pacote”, opina.
De outro ponto de vista, o professor de Direito Internacional da Universidade de São Paulo (USP), Alberto de Amaral Júnior, recorre à história para contextualizar as ações de Trump. “O mundo do multilateralismo nasceu no pós-guerra e se fortaleceu, contraditoriamente, num período de grande expansão neoliberal, mas que agora está sendo desmontado. E o governo Trump encabeça o movimento de desmonte”, analisa.
Charles E. Morrison, membro do East-West Center – uma organização de educação e pesquisa criada pelo Congresso dos EUA em 1960 – em estudo intitulado “Tradição, Trump e o futuro da participação dos EUA no multilateralismo” –, diz que o lema “America First” é uma expressão enraizada e com forte tendência em muitos extratos do pensamento da política externa norte-americana.
“A retórica de Trump ecoou o cansaço de um grande segmento do público americano que via como encargos o engajamento internacional e, com a globalização, a perda de controle sobre seu ambiente”, escreveu Morrison.
Robert A. Manning, integrante do Centro de Estratégia e Segurança Brent Scowcroft, no Conselho do Atlântico – um fórum criado em 1961 para política internacional, negócios e líderes intelectuais –, afirma que, quando se trata de cooperação internacional, a Casa Branca está repetindo os erros do passado. “Ao contrário do que Trump diz, é possível criar e apoiar instituições e coalizões cooperativas para proteger e promover os interesses dos EUA sem sacrificar o patriotismo. Não havia nada de antipatriótico na criação e no empoderamento da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, que deram primazia ao dólar dos EUA, alavancaram a ajuda financeira dos EUA e trouxeram 70 anos de prosperidade e segurança”, escreveu Manning na revista Foreign Policy, especializada em política internacional.
Desenvolvimentos recentes sugerem que o atual sistema jurídico internacional poderá em breve 'ser submetido a um tipo de teste de estresse', que esclarecerá o que é e o que não é resiliente sobre o direito e as instituições internacionais contemporâneas.
Trecho de artigo do professor Kristen Boon, da Faculdade de Direito da Universidade de Emory Law, em Atlanta (EUA).
O professor e ex-consultor sênior dos EUA nas Nações Unidas Alex Pascal avalia que as ações de Trump aceleraram o desgaste do sistema multilateral, mas ressalva que a crise do multilateralismo tem raízes mais profundas. Em análise publicada na revista The Atlantic, Pascal cita a tese de Richard Gowan – especialista da ONU e membro do International Crisis Group –, que vê três crises em particular do multilateralismo: primeiro, uma crise de poder na qual a divisão de poder dos EUA com a China diminuiu a capacidade do governo norte-americano de moldar a agenda internacional e conduzir a ação coletiva; segundo, uma crise de relevância na qual instituições internacionais antiquadas e às vezes escleróticas lutam para enfrentar os desafios globais críticos; e, terceiro, uma crise de legitimidade, à medida que os poderes regionais frustrados e os líderes nacionalistas se retiram das organizações multilaterais ou os desgastam por dentro.
Em ensaio intitulado "Presidente Trump e o futuro do multilateralismo", publicado no site da Faculdade de Direito da Universidade de Emory Law, em Atlanta, o professor Kristen Boon diz que as ações do presidente Trump indicam que os Estados Unidos podem estar se retirando de seu papel de liderança no direito e nas instituições internacionais. "Desenvolvimentos recentes sugerem que o atual sistema jurídico internacional poderá em breve 'ser submetido a um tipo de teste de estresse', que esclarecerá o que é e o que não é resiliente sobre o direito e as instituições internacionais contemporâneas", prevê.
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