| Foto: EFE
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O ano de 2022 termina com uma amostra lapidar de como a cultura digital tem contaminado o noticiário e também se confundido com ele. A história envolve a ativista climática Greta Thunberg e Andrew Tate, ex-lutador preso agora numa investigação por tráfico de pessoas.

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Se você acompanhou a história de perto, provavelmente deve ter achado boa demais para ser verdade. E era mesmo boa demais e mentira. O problema é que foi tratada como noticiário por muitos veículos. Felizmente, parte da imprensa já começa a acordar.

Vou contar em forma de “causo” para quem não acompanhou de perto. Creio ser a maioria. Conforme consultei na minha família, o interesse por essas tretas digitais artificiais é algo muito meu, não da maioria das pessoas.

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Andrew Tate é mais que uma personalidade do kickboxing, esporte em que se tornou famoso. Virou personalidade da internet pela atividade como troll e as postagens absolutamente maldosas e cruéis que costumava fazer.

Está naquele círculo que havia sido banido do Twitter e ganhou a conta de volta após a compra por Elon Musk. É uma tentação danada colocar todo esse pessoal na mesma baciada dos interditados por delírios ideológicos. Mas esse indivíduo é um caso especial.

Todos nós temos uma opinião sobre os banimentos, o viés ideológico e a liberdade de expressão. Essa questão é uma, a qualidade humana de Andrew Tate é outra. Estamos falando do tipo de pessoa que duvida da existência de estupros e faz postagens motivacionais como essa:

“Você é pobre.

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Você não é importante.

Os homens não têm medo de você.

Sua mulher discorda de você.

Suas vidas são uma merda.

Se eu fosse forçado a suportar um ano de sua vida, seria o pior nível de depressão imaginável.”

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Uma discussão é se essa pessoa pode ou não ter uma conta em rede social. A outra é a satisfação que todo mundo tem quando alguém com essa personalidade toma uma invertida da vida.

Andrew Tate é investigado na Romênia por tráfico de pessoas, um crime absolutamente deplorável pelo qual ele não foi condenado. É de se imaginar que alguém nessa posição estivesse completamente dedicado à própria defesa, tanto judicial quanto da imagem pública. Ele não.

Assim que ganhou a conta do Twitter de volta, a prioridade passou a ser dar sua lacradinha comprando tretas com gente famosa. Ele escolheu Greta Thunberg, queridinha dos progressistas.

Um ponto da discussão se tornou viral. É justamente esse aqui, em que a adolescente tira sarro da cara e da masculinidade frágil do personagem em questão. Progressistas obviamente foram à loucura. Mas muita gente que nem gosta da Greta também adorou porque é o tipo de cara que merece uma invertida.

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“Olá @GretaThunberg

Eu tenho 33 carros.

Meu Bugatti tem um quad turbo w16 8.0L.

Meus DOIS Ferrari 812 competizione têm 6.5L v12s.

Este é apenas o começo.

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Por favor, forneça seu endereço de e-mail para que eu possa enviar uma lista completa da minha coleção de carros e suas respectivas enormes emissões”, ele postou.

Ela respondeu tirando sarro e baixando o nível da piada.

“sim, por favor me esclareça. envie-me um e-mail para smalldickenergy@getalife.com, postou a ativista adolescente.

Sei que é chato explicar piada, mas o “causo exige”. O email que ela forneceu é energiadepenispequeno@arrumeumavida.com

Andrew Tate não se aguentou. Resolveu gravar um vídeo de resposta. Na economia da atenção, a treta é ouro. Treta de troll com ícone progressista rende ainda mais - e para ambas as partes.

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Agora é que começa a parte do “causo” que chega à fake news. Ele gravou um vídeo sentado numa mesa com uma caixa de pizza. Horas depois, foi preso na Romênia devido ao processo em que é acusado de tráfico de pessoas.

Começou a aparecer no noticiário internacional a versão de que ele foi encontrado pela polícia devido ao vídeo feito para responder a Greta. A caixa de pizza teria sido decisiva para identificar a localização, algo que a polícia não teria conseguido fazer.

Confesso que até eu fiquei tentada a acreditar. O castigo perfeito para lacrador valentão de internet é se dar mal quando se envolveu em treta desnecessária. Infelizmente já aprendi o suficiente sobre vieses cognitivos para me deleitar com essa história.

Vários veículos de comunicação nacionais e internacionais postaram essa versão. Falaram com a polícia da Romênia para confirmar? Óbvio que não. O professor de comunicação e jornalismo do Insper Pedro Burgos foi quem trouxe na internet brasileira o esclarecimento.

É um exemplo lapidar de como a ideologia não é a linha de corte entre viver na realidade e escolher o pensamento mágico como universo pessoal. Quem foi atrás da história e destrinchou foi um jornalista de esquerda, ex-editor da Mother Jones, Ben Dreyfuss.

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Ele próprio caiu na história do heroísmo acidental de Greta, quando leu a lenda urbana como notícia no Daily Beast. Depois, parou para pensar que seria um castigo bom demais para acontecer na vida real. Então, resolveu fazer uma checagem jornalística tradicional de pouco mais de 10 minutos. Descobriu a farsa.

Qual é o método jornalístico nesse caso? Consultar diretamente quem efetuou a prisão, a polícia romena. Eles é que podem dizer o que levou ou não àquela ação, ninguém mais.

Ele nem estava trabalhando profissionalmente na história. Foi à fonte de notícias mais próximas, os jornais romenos. Nenhum havia publicado nada sobre a relação entre a prisão de Andrew Tate e a briga com Greta.

Começou então a procurar de onde surgiu a história. Eram veículos de comunicação da Europa e dos Estados Unidos. Qual a origem da informação deles? O jornalista verificou que um veículo citava o outro como a fonte da história.

Então, ele decidiu ver a linha cronológica. Onde essa informação de que Greta foi heroína acidental foi publicada pela primeira vez? Foi na conta de Twitter da colunista da Wired e da Slate Alejandra Caraballo, este post aqui:

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As postagens têm agora pouco mais de 24 horas, não foram checadas mas passaram a ser tratadas como verdades e noticiário confiável por dezenas de veículos de comunicação em diversos países:

Os posts aparentemente comentavam um veículo de informação da Romênia, inclusive tinham prints da publicação. Só que Ben Dreyfuss fez algo que nenhum dos replicantes da interpretação havia feito, foi ler a reportagem original. Não tinha nenhuma referência a Greta.

A colunista parecia muito interessada em dizer que Greta é uma “absolute legend”, uma lenda absoluta, por conseguir colocar na cadeia alguém com uma personalidade deplorável e procurado por um crime grave. Não estava interessada, no entanto, em ir atrás da verdade.

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Nesse ponto, a gente pode ter a tentação de pensar que existe uma maquinação maquiavélica para aproveitar cada oportunidade de fazer de Greta uma heroína. É possível imaginar que a excelente equipe de relações públicas da ativista tivesse engendrado tudo isso.

Na era digital, isso não é nem necessário. As pessoas têm preguiça de pensar e muito prazer em confirmar suas próprias crenças com migalhas de informação.

O primeiro ponto é que existe no caso específico uma barreira linguística. Quem fez a reportagem com critério jornalístico escreve em romeno, uma língua que a maioria das pessoas não domina.

O método de muitas pessoas para escrever sobre algo e formar opinião é fazer buscas na internet. Quem faz buscas em romeno? Começa aí a primeira barreira entre os fatos reais e a vontade de confirmar os próprios vieses.

Muita gente que fez a busca encontrou a postagem da colunista progressista no Twitter, citando uma publicação romena. Isso foi assumido imediatamente como verdade, talvez porque quem fez isso quisesse demais acreditar naquela informação.

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Dezenas de artigos foram publicados no mundo todo com a versão falaciosa. Greta não teve nada com a prisão de Andrew Tate. Aliás, ele já havia postado a própria localização no Twitter diversas vezes nos dias anteriores. O New York Times e o Washington Post confirmaram com a polícia romena que Greta não teve nenhuma influência na prisão.

No livro “O Inimigo Conhece o Sistema”, a jornalista espanhola Marta Peirano fala sobre a simplificação do pensamento na era digital. As pessoas se acostumam a agir na internet e nos games, que têm resultados programados por algoritmos. Acabam se esquecendo que a vida não é assim, é permeada de surpresas e acidentes.

Vivemos uma simplificação e, arrisco dizer, até idiotização do sistema de pensamento humano. Na dinâmica das redes sociais, um troll uma hora se dá mal quando tenta aparecer. Na vida real, a coisa é bem mais complicada.

Prender Andrew Tate foi uma longa operação policial na vida real, lidando com pesquisa e trabalho duro, rastreamento e levantamento de informações contundentes que possam levar a uma condenação.

Isso é a notícia. Ela é, no entanto, menos encantadora que o pensamento mágico. Imaginar que um troll possa ser derrubado por uma adolescente em um único post faz parte do universo simplificado intelectualmente em que tentam nos colocar.

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Resta saber qual é a história que ficará para a posteridade, a real ou a que foi publicada antes e tem o deleite do pensamento mágico. Diante de todo o “causo”, parece que estamos presos na ingenuidade de inventar falsos heróis capazes de tudo. Mas encerramos o ano com a notícia boa de que grande parte da imprensa começou a desconfiar desse tipo de manipulação.