Geralmente as ações anunciadas como frutos de boa vontade contra a desinformação no mundo digital são simplesmente abraçadas pela maioria. As redes sociais nos transformaram em viciados na sinalização de virtude, o que facilita o cerceamento das liberdades, sobretudo por governos autoritários.
Em ambientes democráticos, como o que temos aqui no Brasil, o truque não é engolido de forma automática nem pela população nem pela imprensa. É fato que parte da mídia vai simplesmente digerir qualquer ideia denominada de “combate à desinformação” como uma luta do bem contra o mal. Felizmente, não é isso o que acontece com a totalidade dos meios de comunicação e dos jornalistas.
A confusão na definição do que seja desinformação tem servido em diversos países autoritários para criar uma polícia de opinião ou ideologia baseada em argumentos puramente moralistas.
Uma das primeiras medidas apresentadas pelo novo Advogado Geral da União, Jorge Messias, foi uma nova estruturação de cargos e carreiras. Isso foi feito por meio do Decreto 11.3238/2023. O artigo 47 não passou incólume pelo escrutínio da imprensa. Ele cria a “Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia”. Um nome e tanto, temos de reconhecer.
No inciso II vem a parte que causou estremecimento na opinião pública e obrigou a AGU a fazer uma nota pública explicativa. Uma das funções da procuradoria recém-criada é “representar a União, judicial e extrajudicialmente, em demandas e procedimentos para resposta e enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas”.
Num primeiro momento, parece fruto de boas intenções. Mas existe um problema objetivo que é a definição de desinformação. Ela não existe no arcabouço jurídico brasileiro e, no debate público, tem sido simplificada até os limites da distorção completa. Um dos principais erros que temos cometido é absolutamente preocupante porque repete o vício presente em diversos regimes autoritários, confundimos desinformação com mentira ou informação errada. Parece só um detalhe, mas não é.
Num primeiro momento, parece fruto de boas intenções. Mas existe um problema objetivo que é a definição de desinformação.
A confusão na definição do que seja desinformação tem servido em diversos países autoritários para criar uma polícia de opinião ou ideologia baseada em argumentos puramente moralistas. Estar contra o governo é desinformar. Felizmente, não é tão fácil assim fazer esse truque em países democráticos, já que existe uma forte resistência.
Nos processos judiciais que já acompanhei, sobretudo naqueles que movi contra campanhas orquestradas para me difamar e sabotar no mercado de comunicação, não observei clareza do Poder Judiciário sobre a diferenciação dos conceitos de ofensa, mentira e desinformação.
São ações profundamente diferentes e com consequências muito diferentes sobretudo na era digital. No entanto, ainda não é consenso o conhecimento sobre essas definições. Campanhas orquestradas de desinformação envolvendo vários influencers ligados comercialmente tendem a ser julgadas como uma ofensa comum, dessas proferidas por alguém que resolveu fazer um desabafo.
A falta de uma definição jurídica para o que é desinformação torna essa secretaria algo temido por parlamentares, juristas e formadores de opinião.
Vimos o mesmo por parte do Judiciário e de parte da imprensa durante as eleições. O conceito de desinformação foi, inúmeras vezes, definido de forma vergonhosa como “notícias falsas” ou “mentiras”. Se desinformação fosse isso, seria muito simples combater. Aliás, não seria uma das técnicas militares e de controle psicológico mais efetivas no mundo.
Acompanhando a análise até aqui, você pode inferir que o problema é penalizar de menos algo muito grave como a desinformação. Infelizmente, o problema é bem maior. Podemos penalizar demais algo que não é campanha de desinformação, mas uma opinião contrária ou apenas um erro de informação.
A falta de uma definição jurídica para o que é desinformação torna essa secretaria algo temido por parlamentares, juristas e formadores de opinião. Fiz questão de consultar o advogado especialista em liberdade de expressão André Marsiglia para saber se existe algum tipo de consenso sobre a terminologia. Ele tem a mesma preocupação com a falta de objetividade.
“O decreto pune quem desinformar sobre políticas do governo com perseguição judicial. Acontece que desinformar é um conceito jurídico vago, pode ser manipulado ao gosto do freguês. O freguês, nesse caso, é o governo. Por essa razão, é inconstitucional, fere a impessoalidade do Estado, colocando-o a serviço do PT, e potencialmente um instrumento de censura, um canhão apontado contra seus críticos”, explica.
Desinformação tem uma definição técnica. Ela não é a utilizada pelos órgãos públicos do Brasil nem pela nossa imprensa. Precisamos de uma definição jurídica, que deveria ser dada pelo Congresso Nacional e pelo Poder Judiciário. Deixar isso nas mãos do Poder Executivo é uma temeridade.
A palavra desinformação vem do russo дезинформация (dezinformatsiya), que chegou a ser o nome de um departamento da KGB. Na era digital, são ainda os russos os melhores e maiores estrategistas mundiais em campanhas de desinformação, uma sofisticada técnica de inteligência militar.
É absolutamente preocupante a simplicidade intelectual do nível Dollynho em uma resposta oficial sobre desinformação, repetindo que são notícias falsas e que o papel das agências de checagem será fortalecido
No estudo internacional da comunicação, os tipos de informação são descritos pela sigla DMMI, sendo disinformation, misinformation, malinformation e information. As três primeiras são as que levam pessoas a erros, mas sua natureza e, sobretudo, seus propósitos, são muito diferentes. As formas de combater cada uma também são, obviamente.
Desinformação é a disseminação estratégica de informação manipulada com a intenção de alterar a opinião e comportamento do público. Misinformation é o erro não intencional de informação. Malinformation é a informação factual manipulada de forma a enganar as pessoas. Para campanhas de desinformação não necessariamente são utilizadas mentiras nem informações falsas. A sabotagem é principalmente do contexto, não do conteúdo.
Em nota oficial, a AGU informa que não vai cercear a liberdade de expressão e explica: “O combate à desinformação é voltado para a defesa da integridade das políticas públicas. Essa atuação será baseada nas normas vigentes e nos precedentes dos tribunais que disciplinam o assunto, sobretudo o STF, e também na própria sistemática de atuação das agências de checagem de informações falsas. Já há experiências bem-sucedidas de parcerias dessas agências com órgãos de Estado, a exemplo da realizada entre o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) durante as eleições de 2022. A atuação da nova Procuradoria fortalecerá o papel das agências de checagem”.
Como definir que algo tem o objetivo de prejudicar a adequada execução de políticas públicas? Ou estamos diante de uma prova quase impossível ou teremos a ação de telepatas.
É absolutamente preocupante a simplicidade intelectual do nível Dollynho em uma resposta oficial sobre desinformação, repetindo que são notícias falsas e que o papel das agências de checagem será fortalecido. Nada disso tem nenhuma relação com desinformação e checar fatos não é suficiente para combater campanhas de desinformação.
Além disso, é estapafúrdia a ideia de colocar como baliza da verdade agências de checagem que já espalharam fake news com um falso índex de expressões racistas, reproduzido por diversos órgãos públicos e fonte inesgotável de consultorias em “letramento racial” enfiadas goela abaixo das empresas. É comprar ou virar alvo de influencers que se apresentam como “ativistas antirracistas” nas redes sociais.
Para quem não se lembra do evento, trago aqui novamente. Em novembro de 2021, diversas agências e institutos dedicados a fact checking ou alfabetização midiática e financiadas em parte pelas Big Techs publicaram um índex de expressões que deveriam ser proibidas. Num exercício de etimologia freestyle, inventaram origens nefastas de diversas palavras. Você pode ler a coluna que escrevi sobre isso aqui.
Outro trecho da nota oficial da AGU mais preocupa do que explica. “No caso específico do que será objeto de atuação da AGU, a desinformação se caracteriza por fatos inverídicos ou supostamente descontextualizados levados ao conhecimento público de maneira voluntária com objetivo de prejudicar a adequada execução das políticas públicas, com real prejuízo à sociedade.” (grifos meus)
É um texto incompreensível. Não existem fatos inverídicos, ou são fatos ou são informações inverídicas. O que seriam “supostamente” descontextualizados? O que o Poder Executivo não gostar ou decidir que é descontextualizado? Ou algo é descontextualizado ou não é, o supostamente é absurdo.
Como definir que algo tem o objetivo de prejudicar a adequada execução de políticas públicas? Ou estamos diante de uma prova quase impossível ou teremos a ação de telepatas. Para comprovar algo assim, não seria a AGU a ter a função, mas o Ministério Público, que primeiro comprovaria a intenção deliberada.
Vários parlamentares, jornalistas e editoriais da imprensa já se posicionaram contrariamente ao que pode ser uma porta para a criação de uma Polícia da Verdade.
E o real prejuízo à sociedade seria exatamente o quê? É um termo absurdamente vago. Um prejuízo a uma pessoa pode ser visto como a toda sociedade? Se essa pessoa for um político, isso conta mais? A explicação, no final das contas, é mais difícil ainda de entender do que o decreto.
O texto da AGU é vago o suficiente para criar uma polícia política, destinada a perseguir todos os críticos de qualquer decisão do PT. As explicações dadas sobre ele mostram claramente que os técnicos não têm a menor noção do que seja “desinformação”, portanto não têm condições objetivas lutar contra essas operações, que existem e são preocupantes.
Vários parlamentares, jornalistas e editoriais da imprensa já se posicionaram contrariamente ao que pode ser uma porta para a criação de uma Polícia da Verdade ao modelo da ficção distópica de Orwell. Resta saber quem falará mais alto agora.
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