O teólogo, pastor anglicano e professor da Universidade de Oxford Nigel Biggar foi alvo dos canceladores após lançar o projeto “Ética e Império”.| Foto: Divulgação/University of Oxford
Ouça este conteúdo

Quando você vê cancelamentos por aí, provavelmente pensa que são só uns malucos embriagados por ideologia e deslumbrados com a possibilidade de abandonar, pelo grito, a desimportância em que vivem. Há muito tempo não falamos mais disso, falamos de briga de mercado.

CARREGANDO :)

Um artigo excelente do teólogo e pastor anglicano Nigel Biggar mostra em detalhes como funciona esse mecanismo. Foi publicado na Compact Magazine deste mês. Ele traz uma visão interessantíssima com a qual eu concordo, estamos focando em menos culpados do que deveríamos.

Não sabemos o que veio primeiro, se o ovo ou a galinha, o cancelamento ou o sucesso na briga de mercado. Sabemos que andam juntos.

Publicidade

Geralmente, quem cede à pressão dos canceladores é visto como alguém que sofre uma ação irresistível. Será? O religioso e professor da Universidade de Oxford fez um longo texto em que analisa como ganância e covardia sem princípios o que realmente faz uma empresa ceder a canceladores. Depois de décadas como professor e escritor renomado, Nigel Biggar lançou um projeto chamado “Ética e Império”, em que pretendia analisar as críticas e a real atuação do império britânico. Em paralelo, ele assinou um contrato de publicação de vários livros sobre o tema pela editora Bloomsbury.

Foi então que começaram as ações dos anticolonialistas. Você pode se enganar e pensar que eles realmente defendem essa ideologia. Não, eles defendem o próprio bolso. Fingir que luta contra o colonialismo resultou em uma medida eficiente para ganhar a briga de mercado por uma cadeira universitária e espaço na editora. Você mira no concorrente, arruma uma justificativa moral progressista e usa isso para tomar o espaço dele.

Realmente não sei se essas coisas são pensadas e planejadas dessa forma, seria muito maquiavélico e engenhoso. O fato é que nós aprendemos pela experiência e mimetizamos o comportamento das pessoas que têm sucesso. Não sabemos o que veio primeiro, se o ovo ou a galinha, o cancelamento ou o sucesso na briga de mercado. Sabemos que andam juntos.

Se esse pessoal todo realmente fosse contra a colonização e o império britânico, dedicaria a energia a atacar a família real.

De tanto ver cancelamentos, as pessoas repetem o movimento e se juntam a ele. Desligar o sistema cognitivo e se unir à massa contra um inimigo, mesmo que seja só pela internet, gera disparos de dopamina que nos dão a sensação de sucesso. Imagine um vício que, em vez de te derrubar, te beneficia. Fazer parte de hordas agressivas é isso. Você tem um vício na dopamina que seu corpo libera com a ação mas, em vez de pagar por isso como em outros vícios, acaba com uma recompensa profissional, financeira ou de poder.

Publicidade

O primeiro a ter a ideia de atacar o projeto “Ética e Império” foi Priyamvada Gopal, antes acadêmico e agora professor da Universidade de Cambridge. Ele poderia não gostar do projeto, contrapor, até xingar o autor. Mas não era essa a ideia.

Era para desconfiar que alguém em busca de espaço queira simplesmente eliminar do mapa quem já tem bastante.

“OMG. This is serious shit…. We need to SHUT THIS DOWN” (Meu Deus. Isso é uma merda séria… Precisamos ACABAR COM ISSO), escreveu no Twitter. Em seguida, convocou os acadêmicos anticoloniais de Oxford para o que disse ser uma “resposta adequada”.

Esqueça o argumento e olhe apenas para o ponto de vista mercadológico. Duas pessoas atuam numa mesma área. Uma já tem seu nome consolidado, bastante espaço e está num projeto em ascensão. A outra está brigando por espaço. Era para desconfiar que alguém em busca de espaço queira simplesmente eliminar do mapa quem já tem bastante. Por melhor que seja a desculpa, o conflito de interesses é flagrante. Millôr Fernandes dizia não acreditar jamais em quem ganha com a própria militância. É precisamente o caso – e ele tem se repetido diariamente. Ficamos embriagados com os embates ideológicos em redes sociais e perdemos esses fatos de vista.

Em pouco tempo, o acadêmico que buscava por espaço se juntou a outros na mesma condição. Eles pressionaram, por meio de pressão nas redes, que a Universidade de Oxford abandonasse o apoio ao projeto “Ética e Império”, que já havia passado pelo crivo acadêmico.

Publicidade

Muitos podem dizer que a universidade cedeu à pressão porque levou em conta os argumentos. Mas também é fato que se trata de uma instituição particular caríssima que pretende atrair a elite urbana que defende tanto as ideias progressistas quando a imposição delas por via autoritária. Conheço gente que chega a confundir influencers ou profissionais em busca de espaço com ativistas. É uma confusão que os favorece.

Quem quer o espaço profissional e passa o dia lutando por ele tem bastante tempo para enxovalhar a reputação daquele que atualmente ocupa o espaço. A desculpa inicial é que o professor pretendia normalizar as ações brutais da colonização inglesa.

Mas, de repente, isso vira justificativa para pessoas que disputam espaço profissional com ele passarem o dia todo distorcendo o intuito do projeto de Nigel Biggar, pedindo que ele seja afastado ou simplesmente xingando.

Ninguém defende, com medo de virar a próxima vítima. Alguns até participam a contragosto dos ataques com medo da represália.

O professor e religioso conta algo que se torna muito comum nessas situações. Um amigo aconselhou que ele se afastasse do tema porque era algo “muito tóxico”. Não é o tema que é tóxico, são as atuais armas de disputa de mercado. Como uma horda se junta para atacar alguém e incita todo mundo a fazer igual para posar de virtuoso, o tempo todo aquela pessoa está no meio de um ambiente tóxico.

Publicidade

Ninguém defende, com medo de virar a próxima vítima. Ninguém quer proximidade. Alguns até participam a contragosto dos ataques com medo da represália. Para quem olha de fora ou sem analisar, parece que a pessoa de certa forma “pediu” aquilo pelo posicionamento que tem. Se não houvesse a disputa de espaço profissional, o empenho seria o mesmo?

A covardia pode nos fazer retornar à realidade em que os mais bárbaros ganham no grito.

Nesse caso específico tem algo bem curioso. Se esse pessoal todo realmente fosse contra a colonização e o império britânico, dedicaria a energia a atacar a família real. É o que faria lógica. Mas daí seria ideologia. Atacar a família real não rende tantos dividendos profissionais, financeiros nem de poder. Pode, no máximo, trazer seguidores e outros fanáticos.

Você pode conseguir muito mais se, em vez de mirar no inimigo ideológico, usar apenas o discurso ideológico para atacar quem tem o espaço profissional e de mercado que você deseja. Por isso um professor que tem um projeto chamado “Ética e Império” recebe muito mais ataques do que a família real.

A história de Nigel Biggar é longa e termina com o cancelamento do segundo livro da série que publicaria. Havia um contrato assinado, as vendas do primeiro foram acima do esperado e ele entregou o manuscrito no prazo.

Publicidade

Quando você vê cancelamentos por aí, provavelmente pensa que são só uns malucos deslumbrados com a possibilidade de abandonar, pelo grito, a desimportância em que vivem.

A editora alegava que não havia “clima social” para o lançamento da obra. Dizia que ela não seria suspensa, apenas adiada. O professor resolveu insistir e reporta uma imensa troca de emails em que vai encurralando os argumentos da editora.

Termina reafirmando o que estava no seu livro sobre as razões dos canceladores. “Como expus em meu livro, eles mal têm uma perna intelectual para se sustentar. Racionalmente, esses pequenos imperadores estão praticamente nus. Então, com medo de serem expostos, eles fazem muito barulho agressivo para silenciar os críticos e distrair os curiosos. Eles cancelam porque não podem responder”, diz Nigel Biggar.

Em seguida, ele faz a pergunta incômoda aos agentes de mercado que costumam se agachar aos tiranetes:

“A segunda pergunta é esta: por que os gerentes seniores adultos nas editoras – como nas universidades – estão tão dispostos a ceder ao clamor iliberal de seus colegas juniores? A Bloomsbury nega que sua decisão de me cancelar tenha algo a ver com pressão política de baixo, mas como uma fonte interna atesta o contrário e como sua melhor explicação até o momento é comprovadamente falsa, temos boas razões para não acreditar nelas. No caso da Bloomsbury, eles não cederam por motivos comerciais: de acordo com o editor de encomendas, meu livro foi criado para gerar dinheiro para eles. Posso apenas especular – mas minha especulação é informada por outros casos – que eles consideraram que ceder e evitar a infelicidade interna e talvez a agitação externa seria a opção menos dispendiosa. Eles perceberam que apaziguar os iliberais internos era o caminho de menor resistência.

Publicidade

É por isso que é tão importante que a Bloomsbury seja responsabilizada publicamente – para que eles e outros editores arquem com os custos de reputação da covardia sem princípios.”, finaliza Nigel Biggar.

A humanidade passou séculos construindo teorias, estruturas, princípios e leis para que pudéssemos vislumbrar o império da justiça dentro da lógica civilizatória. A covardia pode nos fazer retornar à realidade em que os mais bárbaros ganham no grito.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]